O mito do eleitor iludido

Com frequência, a vitória do candidato adversário é justificada pela incapacidade ou desinformação do eleitor. Em 2022, bolsonarismo e petismo, extremos amplamente conhecidos dos eleitores, dissiparão esta velha quimera

Foto: Orlando Brito

Uma das questões mais instigantes da política é o grau de consciência do eleitor. As opiniões giram 180º. Num extremo, inocente, o eleitor é enganado pela doutrinação ideológica (o sistema) e desinformado pela mídia. No outro, a representação político-eleitoral é a expressão da sociedade que a elege.

No patamar teórico, a análise desta divergência requer que alguns pré-requisitos sejam assentados.

Democracia

Primeiro, a existência de uma democracia onde a liberdade de expressão e o direito à informação não sejam cerceados. Em que pesem as temerárias decisões de supremos sufetas em limitar o direito de expressão (a censura do “bem”, com inusitado apoio da mídia tradicional), o Brasil tem um bom nível destas liberdades.

Educação

Segundo, os cidadãos devem possuir um grau mínimo de educação, ou seja, pelo menos serem alfabetizados. De acordo com o IBGE, o Brasil tinha 11 milhões de analfabetos em 2019 ou 6,6% das pessoas com 15 anos ou mais. Para estes, o voto é facultativo. O analfabetismo funcional pode ser quase três vezes maior.

Voto facultativo

Terceiro, o voto deve ser universal, direto, secreto e livre; transformar um direito numa imposição distorce a vontade do eleitor. De qualquer jeito, embora o Brasil mantenha o anacrônico voto obrigatório, na prática parcela expressiva dos brasilianos que não quer votar não vota. Em 2018, 30,87% dos eleitores votaram em branco e anularam o voto (9,57%) ou abstiveram-se (21,30%).

Tomando por base países que respeitam seus cidadãos e lhes asseguram o sufrágio livre, outros 20% deixariam de votar caso a obrigatoriedade fosse suprimida. Ou seja, com o voto facultativo metade dos eleitores iria delegar à outra metade a escolha da representação política – o que não significa abrir mão da atuação política. Afinal, quem é mais consciente? Quem vota obrigado e logo esquece a opção digitada na urna ou quem deliberadamente rejeita o sufrágio sem abrir mão de formas permanentes de atuação política? Além disto, o voto facultativo exigiria dos políticos empenho maior na conquista da consciência do eleitor.

Financiamento

O sistema tornar-se-ia mais justo se, a partir de critérios mínimos (como idade), todo cidadão tiver o direito de postular um mandato eletivo. Em tese, para que este quesito seja amplo (1) não deveria haver a barreira da filiação partidária e (2) todos deveriam ter os mesmos recursos nas campanhas eleitorais.

“Ladrões do bem”

Apesar das lacunas em parte destes quesitos, numa escala consciencial que fosse de 0 a 100 (de nenhuma à plena consciência) provavelmente nosso país estaria mais perto do topo do que da base deste sistema de pontuação. De maneira geral, os eleitores daqui votam em ladrões sabendo que são ladrões – ladrões “do bem” ou ladrões “amigos”, mas ladrões; ou elegem postulantes a autocratas porque querem transformar o Brasil numa ditadura; ou elegem parlamentares como se fossem representantes de categorias profissionais ou estratos sociais; ou elegem celebridades por que são… celebridades.

Como parâmetro sobre nosso grau de consciência, basta comparar nossa situação a dos eleitores cubanos e russos. Elegemos quem queremos e por que queremos.

Conceda-se o benefício da dúvida quando os candidatos são neófitos, sem passado conspurcado por fichas criminais ou declarações insidiosas. A maioria dos eleitos (e reeleitos), no entanto, é conhecida do eleitor.

O que dizer de um clã que enriqueceu em meio a denúncias de corrupção e que, por quatro décadas, foi eleito e reeleito para governar um estado mantido sempre entre os mais pobres do Brasil? A culpa da miséria local é exclusiva destes governantes? Os eleitores são vítimas inocentes? E o que dizer de cidadãos que entram pobres e enriquecem na política, sempre reeleitos pelo voto universal, direto e secreto?

Lógica do paternalismo 

O mito do eleitor iludido serve sobretudo a derrotados. Quem perde tem o subterfúgio de atribuir a conquista do poder à capacidade ilusionista do adversário e à inocência do eleitor.

Para além do interesse de políticos, muitos dos que defendem a tese do eleitor iludido escoram-se em dois pressupostos sequenciais. As pessoas são incapazes; por incapazes, precisam de tutores. Há um âmago autoritário nesta formulação; as massas são incapazes e precisam de quem as conduza. Ainda no campo teórico, isto não é um problema se a tutela for consentida. De maneira geral, desde os primórdios da civilização os humanos gostam de escolher tutores (salvadores, messias, guias) e segui-los.

A maioria dos eleitores não se ilude (ou, de um outro ponto de vista, quer se iludir); escolhe por semelhança e de acordo com interesses pessoais. Que diferença há entre o parlamentar que intermedeia uma licitação dirigida (que lhe renderá propina) e um cidadão que aceita pagar menos para o médico desde que a nota fiscal não seja emitida (portanto, sonegando imposto)? Cada um cometeu uma ilegalidade do tamanho da sua oportunidade e do seu alcance. Ambos se corromperam. E se um se corrompeu menos é porque menos podia.

E o que dizer do esporte nacional de furar filas e, pior, gabar-se publicamente desta atitude? É a lógica do paternalismo, que o leitor já viu aqui n’Os Divergentes.

O fim do mito

O voto por afinidade ou interesseiro não é novidade. Porém, as eleições de 2022 tornarão mais difícil sustentar o mito do eleitor iludido. Consequência de dois fatores conjuminados, o grau de consciência política será mais alto este ano. Primeiro, como alegar desconhecimento do que o bolsonarismo e o petismo representam? Segundo, a informação grassa abundante nas mídias tradicional e engajada, afora o mundo licencioso da internet. Em tempos de redes antissociais, boa parte dos internautas caça informação que reforce suas crenças. O autoconvencimento (ou autoengano) é um direito.

Manifestantes protestam em frente ao Supremo Tribunal Federal – Foto: Orlando Brito

De um lado, o eleitor respaldaria um presidente belicoso, que governa para nichos e com disposição para romper a ordem democrática. Do outro, o eleitor perdoaria a corrupção como método de gestão – fartamente demonstrada pelo Mensalão e pela Lava-Jato, com os votos das quatro instâncias do Judiciário – e apoiaria o partido que cultua ditaduras amigas. Ambos transformaram (ou tentam) estatais como a Petrobras na extensão do partido.

Ilude-se quem acredita que um ladrão é um sujeito honesto ou quem vê num autocrata um defensor da democracia. Quando o eleitor tem consciência da corrupção e da veia autoritária de seu candidato não está se iludindo, mas chancelando a deterioração da política e da administração pública. Claro que é possível buscar uma novidade, rechaçando a iniquidade moral e a violência estatal. Até aqui, de acordo com as pesquisas de intenção de voto, não parece ser esta a disposição do eleitor brasiliano.

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