Ao postular a censura, jornalistas flertam com o arbítrio

Extremos divergem nos alvos e nas metas, mas convergem nos métodos. Reprimir divergentes, no lugar da contestação racional e científica, é um deles

Restringir a liberdade de expressão é caminho seguro para o autoritarismo

Um dos impulsionadores da evolução é a característica humana de contestar. Ao não se conformar com as coisas como elas são ou parecem ser, alguns indivíduos promoveram mudanças determinantes, na maior parte das vezes melhorando a vida da humanidade.

No Houaiss, duas acepções de contestar são “pôr em dúvida” e “questionar algo ou alguém”. Entre os antônimos, o lexicógrafo lista “aceitar”, “acatar” e “conformar-se”. Curiosamente, o rol de sinônimos é mais extenso: “argumentar”, “contrariar”, “negar”, “resistir”, “afrontar”, “combater”, “discordar” etc.

Antonio Risério, antropólogo, contesta a versão do racismo estrutural

No último dia 19 de janeiro, jornalistas da Folha de S. Paulo pregaram a interdição do debate promovido por aquele periódico. Contrariados com o artigo do antropólogo Antonio Risério, “Neorracismo identitário” [versão impressa, 16/01/22], o grupo pediu à direção do jornal que censurasse Risério, bem como Demétrio Magnoli e Leandro Narloch, autores “recorrentes de conteúdos racistas”, conforme pregam os signatários da carta aberta.

Registre-se, en passant, que a iniciativa carece de senso de oportunidade. A Folha de S. Paulo, ao lado da TV Globo, é o periódico da mídia tradicional que mais oferece espaço engajado aos interesses dos movimentos negro, LGBT e feminista. A atitude mistura inépcia e patrulha ideológica.

Blasfemos e hereges, tremei

Este gesto sedimenta-se no fundamento político-doutrinário que perpassa a militância da chamada esquerda, viés político predominante entre os profissionais da mídia tradicional. Assim como nas entranhas de algumas seitas religiosas, estes agrupamentos – aí incluídos os identitários – movem-se a partir da hegemonia do pensamento, a qual, por seu turno, calça-se na prepotência doutrinária.

Tanto quanto um crente considera blasfêmia desacreditar em sua divindade, este tipo de militante esconjura todos os que pregam diferentemente das cartilhas que o conduz. (A maior parte das pessoas, como estudou Serge Tchakhotine, apenas segue ideólogos (ou gurus) que lhes pareçam confiáveis, evitando a leitura divergente e crítica; mas este é outro assunto.) Mais do que não admitir, eles fogem das contestações, que, além de cansativas, geram desconforto e frustração. Ambos, o crente e o militante, têm a convicção de que somente determinada doutrina salvará a massa de fiéis da heresia dos ímpios ou dos inimigos do proletariado e do campesinato.

Demétrio Magnoli, sociólogo, está entre os alvos da censura proposta por jornalistas

Esta essência motivadora tolhe o debate. Seu âmago é, assim, o reverso da premissa científica da dúvida perene. Desprezam os princípios iluministas, como listou Wilson Gomes: “examinar, duvidar, rediscutir premissas e verdades”. Movem-se por verdades absolutas, antípodas do pensamento crítico

“Não sei, só sei que foi assim”

Os signatários da missiva à Folha tomam como verdades incontestes princípios forjados nas ciências sociais, eivadas de parcialidades, pois, além da inexatidão intrínseca, são dominadas pela militância da chamada esquerda, sobretudo na academia. Ora, se mesmo as ciências exatas têm seus dogmas revistos e questionados, quanto mais as sociais.

Trecho da pregação de jornalistas da Folha

Limitando-se à leitura das colunas e dos artigos veiculados pelo matutino paulista após a publicação de “Neorracismo identitário”, o conceito de “caráter estrutural do racismo” é brandido como argumento inquestionável. Já os autores criticados questionam este e outros preceitos dos identitários, como, por exemplo, a diferença entre escravidão e racismo. Por óbvio podem estar errados, mas seus artigos são largamente embasados – tanto que detêm apoio de quem removeu (ou nunca usou) os antolhos ideológicos que embotam o discernimento.

Os artigos que os periodistas querem censurar trazem convergências e divergências. As convergências foram ignoradas: “Todo o mundo sabe que existe racismo branco antipreto“; “A escravidão acabou; o racismo, não“; “(…) o racismo é inaceitável em qualquer circunstância“. As divergências que renderiam bom debate, desprezadas. Mais profícuo e inteligente aos detratores, embora mais trabalhoso, seria confrontar alguns postulados do autor, como sua polêmica tese do “projeto supremacista” negro.

Razão numa hora destas?

O truque para fugir da contestação reveste-se de elementar arma retórica. Cria-se um princípio tido como definitivo. A partir dele, todo que o questiona é herege ou apóstata. Nada de novo. Outro estratagema é amplificar os defeitos do adversário e esconder ou minimizar as nódoas dos aliados – como atacar a democracia israelense e relativizar seus inimigos homofóbicos, misóginos e autoritários.

Por fim, há o subterfúgio de comparar as ideias de seus contestadores às pregações do Holocausto ou do terraplanismo. Ora, mentiras e inverdades não foram combatidas e suplantadas escondendo-as, mas enfrentando-as com a disposição argumentativa racional. Não há garantia de que a razão prevalecerá, mas a história indica que mais cedo, ou muito mais tarde, a verdade se imporá – até que outra verdade a suplante. Outrora, a inferioridade feminina e a escravidão eram normalizadas. Diante do enorme desconhecimento da humanidade sobre a existência, imprudente acreditar em postulações absolutas.

Parte das diatribes ao artigo em tela não parece honesta, burla a razão e escorrega perigosamente para o autoritarismo, onde a censura é arma valiosa e praticamente inescapável dos que flertam com métodos arbitrários. Trágica ironia deste tipo de iniciativa é que ela se espraia como guanxuma em solo pobre de argumentação racional e fértil em dogmas, à destra e à sinistra, pois os extremos parecem convergir nos métodos. O argumento vai se impondo pelo berro e pela doutrinação, sufocando a razão, que requer tolerância, equilíbrio e honestidade intelectual.

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