Quem com um mínimo de lucidez acompanhou a ostensiva articulação de um golpe liderado por Jair Bolsonaro contra os outros poderes sabia que tinha tudo para dar errado. Com a exceção dos bajuladores, Bolsonaro foi aconselhado a não embarcar em uma aventura que só teria a perder. Preferiu apostar num delírio que deu ruim: sonhou com inéditas multidões nas ruas, que ficou muito aquém dos investimentos e promessas em dois meses de mobilização. O golpe se desmanchou no ar. Deixou um problema — uma penca de caminhoneiros, com apoio de sua base mais fanática, tentando emparedar o país. Por mais incômodos que causassem, foi Bolsonaro quem ficou na berlinda.
Diante das fortes reações das instituições, puxadas pelo duro discurso do presidente do STF, Luiz Fux, o reflexo de suas alucinações na economia, a falta de efetivo apoio popular e o fiasco da ilusão de motins policiais e levantes militares, Bolsonaro começou a recuar já na noite da quarta-feira (8). Ensaiou, ainda a meia boca, um pedido de recuo dos caminhoneiros mais radicalizados, como o inconformado Zé Trovão, que apostaram numa virada de mesa, com seus ídolos malucos assumindo todos os poderes da República. Tendo Bolsonaro como chefe supremo dessa nova ditadura.
Aquele áudio que tanta polêmica causou durante a madrugada da quinta-feira era apenas uma cortina de fumaça para um arrego bem maior que já estava em curso. Paranoico por natureza, que enxerga e inventa conspirações, Bolsonaro sentiu o bafo real de um basta dos establishments econômico e político. Antes mesmo do brilhante e devastador pronunciamento do ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ele pediu o socorro do ex-presidente Michel Temer, jurista e conhecedor dos meandros dos poderes em Brasília — com a vantagem adicional de que o ministro Alexandre de Moraes, visto como algoz por Bolsonaro, foi por ele indicado para o STF.
Até a manhã da quinta-feira, Bolsonaro achava que poderia seguir no seu jogo duplo, pedindo desculpas às autoridades e poderes agredidos, mas fingindo outro papel para os bolsonaristas. Mas já não havia a menor condição de continuar com essa presepada. Pouco depois das 11 horas, após viagem de São Paulo a Brasília no avião presidencial, Michel Temer convenceu um abatido Bolsonaro a subscrever um texto com um compromisso público com a democracia, reconstrução de pontes com o STF e com outras instituições por ele antes detonadas. Fez parte desse pacote uma conversa respeitosa com “o professor e jurista” Alexandre de Moraes, dois dias antes chamado de “canalha” na Avenida Paulista.
O efeito foi imediato. O mundo político e o mercado financeiro rapidamente responderam a essa baixada de bola. A tensão diminuiu em Brasília, o dólar caiu, a Bolsa de Valores subiu e o movimento dos caminhoneiros se esvaiu. “Estou muito feliz. É hora de distensionar o País”, comemorou Temer com ares de dever cumprido. E fez questão de dar um peso diferenciado à tal “Declaração à Nação” ao tom golpista de Bolsonaro a vida inteira e, em especial, nos comícios de 7 de Setembro em Brasília e em São Paulo: “Veja bem. O presidente não falou num comício, numa entrevista à imprensa, ou no cercadinho do Alvorada. Ele assumiu um compromisso formal, escrito e assinado com a Nação, um compromisso de moderação”. A dúvida no país é de quanto tempo o ciclotímico presidente da República vai manter esse compromisso com a democracia.
Na noite dessa quinta-feira, em sua live semanal nas redes sociais, Bolsonaro fez uma ginástica verbal para não desagradar ninguém. Pediu ‘um tempinho” a seus apoiadores que estão estrilando contra seu escancarado recuo com adjetivos como traidor, frouxo, covarde e por aí afora. Depois de se justificar com o custo econômico da paralisação dos caminhoneiros, fez um apelo patético: “Muitos estão batendo em mim por causa da nota, eu não vejo nada demais na nota… Eu só sou o chefe da nação. Estou com vocês, eu tô com o povo, onde o povo estiver, estarei. Para mim é mais fácil ficar dentro do Alvorada, cuidar da minha vida, abandonar o povo. O que é comum, infelizmente, muitos políticos agirem dessa maneira”.
É de uma cara de pau sem limite. Bolsonaro continua posando de político diferente, avesso às mordomias do poder, enquanto todas as investigações mostram a farra com dinheiro público e enriquecimento ilícito de todo seu clã. Mas é uma enganação com perna curta. Pelo que indica até a revolta de bolsonaristas com Bolsonaro seu tombo pode ser muito maior.
A conferir.