A OAB também entra na barca de Bolsonaro para barrar a Lava Jato

A metamorfose de entidades e de caciques políticos como o PT e a OAB que, por interesses corporativos, viraram parceiros de um projeto que antes denunciavam como autoritário

Felipe Santa Cruz em sessão do Supremo, com o ministro Marco Aurélio - Foto Orlando Brito
Como em outras atividades humanas, princípios e convicções na política costumam ser voláteis, nem sempre resistem ao pragmatismo. Antes mesmo de tomar posse, o governo Bolsonaro era visto como uma ameaça à democracia por seus adversários e por entidades representativas da sociedade. Naquele contexto, a escolha do juiz Sérgio Moro “com carta branca” para comandar o Ministério da Justiça e da Segurança Pública foi entendida como aval democrático por boa parte da população. Mas desagradou ao establishment político e a todos setores que se sentiam ameaçados com a sacudida na histórica impunidade no país pela Lava Jato e por outras grandes investigações sobre corrupção de colarinho branco.
Essa virada tipo ponta cabeça, puxada pelo Mensalão e a Lava Jato, começou a expor podres de todos os poderes e a farra com dinheiro público de políticos de todos os naipes em um jogo de ganha ganha com empresários de todos os tamanhos. Comprovou que a corrupção é endêmica no Brasil. Ela faz parte de uma cadeia de negócios que, além de megas projetos, por si só movimenta alguns nichos da economia. Um pequeno exemplo: antes mesmo do desastre da pandemia, a Lava Jato já havia afetado restaurantes em Brasília onde antes a grana de lobistas em almoços e jantares com autoridades de todos os poderes assegurava o lucro.
Bolsonaro no discurso em que anuncia ter acabado com a Lava-Jato – Foto Orlando Brito

A narrativa dos que, pelos mais variados interesses, combatem a Lava Jato é que suas apurações sobre bilionários desvios de dinheiro público atropelaram os negócios das maiores empreiteiras do país, e também de algumas campeãs mundiais em minérios, agronegócio, entre poucos outros. Por esse script, defende-las, mesmo com uma eventual punição de seus donos e gestores, seria bom para o país. Uma discussão até razoável se os que mais batem nessa tecla não estivessem defendendo outros interesses em causa própria.

Os políticos, por exemplo, usam esse discurso como escudo para seus próprios rolos. Entraram nesse jogo para bancar suas carreiras públicas, uma boa parte aproveitou para enriquecer, e outros se contentaram em melhorar de vida. É verdade que não é de hoje que a política e outras atividades públicas são trampolim para status e riqueza pessoal — e por seu corporativismo rede de proteção em todas as esferas de poder, do município a União. A questão mais recente é que isso ficou de tal maneira escancarado que atraiu todas as outras bandidagens – para as milícias, PCC e outras atividades criminosas com grande arrecadação virou um bom investimento.
O interesse comum de todos eles, do corrupto político ao traficante de drogas, é por um estado menos “punitivista”, em que advogados competentes e juízes complacentes aliviem a barra. Durante décadas, até séculos, a aplicação da lei penal no Brasil é desigual. O ladrão de galinha sempre vai para a cadeia enquanto os barões da corrupção se beneficiam de artifícios legais para escapar das penas. No andar de cima, a punição só dói quando os atinge. Daí a ampla aliança contra o trabalho de policiais federais, procuradores da República, auditores da Receita Federal, do Banco Central e do Tribunal de Contas da União — todos concursados — para  reduzir os ralos da corrupção com dinheiro público.
Os ministros Toffoli e Gilmar Mendes – Foto Orlando Brito

É uma aliança tão ampla que extrapola divergências políticas e ideológicas. Enquanto devotos se estapeiam nas redes sociais, os caciques que os estimulam se entendem em Brasília. O acordão contra a Lava Jato une o presidente Jair Bolsonaro, o Centrão, o PT de Lula, os tucanos de Aécio Neves, e só é combatido no Congresso por vozes isoladas e minoritárias. Esse acordão só deslanchou depois do aval de ministros do STF, como Gilmar Mendes e Dias Toffoli, que estimularam a campanha de um time de famosos advogados criminalistas contra as apurações do ministério público, e de todo aparelho estatal, autorizadas pelo judiciário.

Esse amplo leque comemorou a indicação do advogado Kassio Nunes Marques para a vaga do ex-decano Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal. Como era previsível, com todo esse apoio, a aprovação dele pelo Senado foi um passeio. Mas a turma quer mais. Até o presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz, antes adversário feroz do governo Bolsonaro, mudou agora de postura. Segundo a jornalista Bela Megale, competente colunista de O Globo, Santa Cruz parece ter superado os insultos de Jair Bolsonaro à memoria de seu pai — morto na ditadura militar- e já se diz aberto ao diálogo com o governo após a escolha do “garantista” Kassio Marques. E também já aposta em novas parcerias.
Kassio no CCJ – Foto Orlando Brito

— A vaga do Kassio Marques  no Tribunal Regional Federal da 1ª Região é outra que depende da escolha de Jair Bolsonaro. A OAB vai trabalhar para que todos os integrantes da lista que chegará ao presidente sejam garantistas. Nossa luta é de sobrevivência em relação à desproporcionalidade que ganhou o Ministério Público. Eu respeito, mas o órgão se tornou um gigante, enquanto a advocacia passou a ser criminalizada – disse Santa Cruz.

Lula em São Paulo – Foto Divulgação/PT

Os caciques políticos, o ex-presidente Lula, Aécio Neves e Jair Bolsonaro — depois que sua família foi flagrada no escândalo das rachadinhas — repetem a mesma narrativa de que a política está sendo criminalizada nas investigações sobre esquemas de corrupção. Os advogados de colarinho branco e de outros crimes que também caíram nas redes de investigação, acusados de receberem propina para a compra de decisões e sentenças judiciais, também se dizem vítimas da “criminalização” pelos investigadores.

A meta comum é travar o avanço das apurações em todas as frentes estatais – ministério público, Polícia Federal, Receita Federal, Coaf, Banco Central, auditores do INSS e por aí afora. O lugar onde eles sempre tiveram sucesso foi no judiciário, que a partir do julgamento do Mensalão pelo STF começou a mudar de postura em relação a histórica impunidade dos poderosos no país. Foi o início de uma mudança estrutural no  eixo de poder. Daí o tamanho da reação.
Esse arco de força contra a Lava Jato seria imbatível em qualquer outro momento histórico. Mas enfrenta um exército de servidores armados pela Constituição de 1988 para cuidar direito do dinheiro público que não se curva a essa armação política. E, igualmente importante, tem o apoio de uma opinião pública cada vez mais cansada dessa roubalheira.
A conferir.
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