A Gripe Espanhola, a grande epidemia do início do século XX, chegou ao Brasil pelo porto do Rio de Janeiro, em setembro de 1918, a bordo do correio britânico Demerara vindo de Lisboa com escala em Dakar. Naquela epidemia, como na atual, o búzio demorou a tocar. As mortes estranhas, dolorosas e rápidas se espalhavam pela cidade. Assim como mentes primitivas e almas azinhavradas atribuíram aos chineses a “invenção” do coronavírus, o carioca de 1918 – nesse caso dando vazão ao festejado humor fluminense – considerou a doença uma espécie de “arma secreta alemã, embutidas nas salsichas”.
Quando as mortes chegaram a centenas por dia, as autoridades perceberam que havia de fato uma grave epidemia no país. Mesmo sendo a cidade mais atingida, o Rio não sofreu sozinho. Recife, Fortaleza, Salvador e Santos também viveram seus dias de horror. Ontem como hoje, remédios milagrosos e curas extemporâneas foram anunciados e as autoridades sanitárias, no primeiro momento, também tentaram amenizar a gravidade da peste. Cenas mais fortes do que as atuais aterrorizaram a paisagem da metrópole imperial. Não havia leitos nos hospitais, cadáveres eram empilhados nas ruas, mortos eram largados nas calçadas aguardando carroças ou caminhões que viriam recolhê-los, não raro depois de dias. Inexistiam velórios e muitos corpos eram jogados em valas comuns ou simplesmente incinerados. Há histórias de enterrados vivos e estertores antecipados com pazadas desfechadas pelo coveiro da hora.
Pouco mais de 45 dias depois de desembarcar na capital da República na boca, no corpo e nos calçados dos marujos britânicos que animaram a Praça Mauá naquele setembro de 1918, a Gripe Espanhola, no final de outubro daquele mesmo ano, como num passe de mágica, foi embora. As mortes cessaram, os enfermos recuperaram-se, o comércio voltou a funcionar, a vida a fluir, o carioca a fruir no seu melhor estilo. Contaminações esporádicas ainda ocorreriam, como foi o caso do ex-presidente Rodrigues Alves, que viria a falecer em janeiro de 1919. Miguel Couto, então nosso maior clínico, disse à época que mais de 600 mil pessoas haviam sido contaminadas no Rio, pouco mais da metade da população da capital da República. Considerou um milagre a morte ter alcançado, numericamente, apenas 15 mil cariocas. Algo em torno de 2,5% dos infectados.
Finda a Primeira Guerra Mundial e dissipado o vírus e suas mortes, o espírito brasileiro mostrou, novamente, seu verdadeiro estilo. “Quem não morreu na Espanhola / quem dela pôde escapar / não dê mais tatos à bola/ toca a rir, toca a brincar…”, cantava o grande sucesso do carnaval de 1919, considerado um dos mais eufóricos dos Momos da vida carnavalesca do Rio. Este relato é descrito com vantagens, primor e estilo, no livro “Metrópole à Beira-Mar – O Rio Modernos dos anos 20”, do jornalista Ruy Castro.
Não se sabe ainda, e talvez jamais possamos identificar, quando e por onde chegou o coronavírus ao Brasil. O fato doloroso é que passamos os cem mil mortos em pouco mais de cinco meses da presença do vírus no país na esteira de um espetáculo dantesco de descaso, desordem, abandono e quase achincalhe do poder público, com destaque para a presidência da República, diante do avanço da epidemia. Curiosamente, o incômodo diante desse horror se restringe, de certo modo, à mídia, aos comentaristas, aos eventuais acadêmicos e a algumas vozes do Poder Judiciário. No mais há uma estranha aceitação das mortes e enfermidades. Ela torna-se normal e passa integrar a paisagem. Parece que aguardamos o próximo carnaval!