Não bastassem as notícias do aumento diário no número de mortos e da ingerência do governo brasileiro em lidar com a crise sanitária mais grave que já vivemos, a da Covid-19, temos que “engolir” um jornalismo do tipo: “Em casa, procuradores, ministros e advogados conciliam processos com filhos e lives”. Neste cenário do jornalismo medíocre, a mulher parece mesmo não existir! Não merece ser ouvida na reportagem de um dos veículos mais lidos do país, pois afinal “esta é uma tarefa comum às mulheres: equilibrar a carreira profissional com o cuidado dos filhos e os afazeres da casa”.
Na gravidade que o assunto enseja, não está apenas uma “retórica feminista” para os “machistas nossos de cada dia”, está um chamado urgente para dizer que, neste período extremo por qual o mundo passa, são as mulheres a parcela da população que mais está exposta ao esgotamento físico e mental. Que dirá então a enfermeira e a médica no trabalho direto com os pacientes infectados pelo vírus ou aquela mãe que perdeu o trabalho como diarista e tem que sustentar a casa sozinha? Para os que ainda não entenderam, a questão é bem mais complexa que os conceitos de machismo e feminismo, é caso de violação de direitos humanos mesmo!
Somos todas e todos testemunhas do crescente número de denúncias de violência doméstica por parte de companheiros que usam como justificativa estarem “estressados” com o confinamento. No ideário machista, mulheres são histéricas, descontroladas, não agem com a razão. Mas não são os “homens sensatos” que estão sendo espancados e até mortos em casa durante a pandemia. O que estamos a assistir é um aumento sem precedentes dos crimes de feminicídio.
A reportagem da qual falávamos no início deste artigo, contraposta com a devida resposta e revolta de coletivos de advogadas – que, com razão, foram apontar o machismo que invisibiliza as mulheres –, nos leva a entender por qual motivo políticas públicas de gênero são sim extremamente importantes para a saúde de uma população. E nos clareiam as ideias quando percebemos que este governo de Jair Bolsonaro é o maior contribuidor, digamos assim, para a diminuição de projetos e canais de enfrentamento à violência imposta às mulheres.
Quando falamos em projetos governamentais neste sentido, há que se pensar em ações de curto e longo prazo e o governo federal tem falhado neste aspecto. As ações precisam ser imediatas para dar socorro às mulheres que se tornaram mais vulneráveis com a pandemia, mas também não se pode esquecer das estruturas sociais que sustentam essas violências. E é nesse ponto que se unem a violência física e a violência da invisibilidade do trabalho feminino no domínio da casa.
Jornada de trabalho das mulheres cresce com home office
As mulheres em home office agregam na mesma jornada o que faziam de forma dupla. Sair de casa para trabalhar era uma forma de se dedicar à sua profissão, deixando para depois do expediente cuidados com o lar que nunca deixaram de ser “obrigação” delas. Agora as duas jornadas se coadunam e exigem o chamado “se virar em duas” nas horas “úteis” do dia.
Da mesma forma que os advogados, juízes e promotores citados na reportagem que deu origem a este texto – feita também por um repórter homem – não enxergam o excesso de trabalho de suas companheiras, muitos são os que estão em home office e parecem não perceber que suas companheiras também estão e que, por óbvio, não pode ser apenas delas a tarefa de limpar a casa e alimentar a família. As mulheres não deveriam pedir para seus companheiros recolherem o lixo do banheiro ou lavar a louça acumulada na pia, pois muitas vezes o pedido é apenas um dos muitos gatilhos que disparam a violência doméstica, seja psicológica ou física.
A urgência em relação à violência dentro dos lares e seu aumento perigoso, em plena pandemia de Covid-19, tem chamado a atenção das autoridades no Brasil e no mundo, uma vez que todos os países que adotaram medidas de isolamento social registraram aumento no número de agressões contra mulheres, igualando países supostamente avançados em direitos humanos com outros nem tanto. A ONU já chama de “onda global de violência doméstica” e a situação fez com que a própria OMS, entre tantos discursos voltados ao combate ao novo coronavírus, tenha lembrado aos países que devem fortalecer suas redes de apoio às mulheres vítimas de violência, como serviços jurídicos, policiais e de acolhimento.
No Brasil, órgãos como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Tribunal de Justiça de São Paulo lançaram grupos de trabalho e campanhas que têm como principal foco oferecer às mulheres canais de denúncia, incentivando-as a não ficarem caladas. Da mesma forma, o ministério da Mulher e Direitos Humanos (MMDH) tem lançado aplicativos e cartilhas para as mulheres, informando os canais que devem procurar e explicando até mesmo o que pode e deve ser considerado violência doméstica. Porém, partem de duas premissas questionáveis: que as mulheres precisam aprender a se defender e que o combate à violência doméstica começa com as atitudes das mulheres apenas – nenhum dos materiais produzidos pelo MMDH, por exemplo, se dirige aos homens. As poucas mensagens que fogem disso são as que têm incentivado os vizinhos ou os parentes a denunciarem.
Ainda que não possamos descartar o fato de que as vítimas têm dificuldades de buscar socorro – principalmente por estarem confinadas com os agressores e vigiadas por eles, por medo de que a violência possa se voltar aos filhos, por medo de sair de casa e ter de lidar com o vírus -, ainda há a crença de que se a mulher não denuncia certamente é porque é fraca, submissa. Mas os dados conflitantes têm apontado justamente o contrário, pois muito embora o número de registros de boletins de ocorrência feitos em delegacias da Polícia Civil tenha diminuído em todo o país, as chamadas ao 190 da Polícia Militar ou do Disque 180 têm aumentado, o que desmonta essa visão de se exigir uma atitude das mulheres.
O aumento vertiginoso nos feminicídios, ou seja, quando a violência doméstica atinge seu extremo irreversível, aponta que algo está deixando de ser feito no meio do caminho. Antes da pandemia, nunca foi novidade que muitas mulheres mortas por seus companheiros já haviam procurado delegacias e chegavam a possuir medidas restritivas impostas pela justiça. As especialistas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), que tem monitorado e divulgado os números da violência, são unânimes em afirmar que faltam protocolos que assegurem às vítimas os encaminhamentos necessários para que estejam de fato protegidas. Esses protocolos ainda não foram construídos e formalizados pelo ministério da Justiça e Segurança Pública, que deveria promovê-los junto com os ministérios de Mulheres e Direitos Humanos e da Saúde.
Casas de acolhimento feminino
Uma questão a ser resolvida urgentemente são as casas de acolhimento às mulheres vítimas de violência que lentamente estão sendo implantadas pelo país. O projeto Casa da Mulher Brasileira, criado pelo governo federal em 2015, para reunir vários serviços especializados no mesmo lugar (delegacia, juizado especial, defensoria pública e abrigo para elas e seus filhos), não contou com repasses federais no ano de 2019 e as poucas Casas em funcionamento no Brasil estão a cargo somente de estados e municípios, atuando em condições precárias e cobrindo áreas ínfimas frente ao tamanho do nosso país.
Mesmo que estejam cientes de seus direitos e dos canais que podem buscar, as mulheres não estão seguras e só veem a violência crescer. O aumento dos casos de feminicídio é alarmante, segundo dados do FBSP São Paulo registrou um aumento de 46%, o Acre 100%, o Rio Grande do Norte 300% e o Mato Grosso atinge o triste primeiro lugar com 400%. Enquanto em março de 2019, duas mato-grossenses foram assassinadas, em março de 2020 foram 10. Quantas dessas, mesmo cientes dos seus direitos, não tiveram um fim trágico porque não tinham para onde ir, porque tinham medo ou vergonha de denunciar e serem desacreditadas, ou porque acreditavam que de nada adiantaria a denúncia por não terem proteção garantida pelo Estado?
Num mundo em que as mulheres ainda são culpadas pela violência da qual são vítimas, seja sexual ou física, quando muitas vezes precisam responder perguntas como “o que você fez?”, “que roupa tava usando?”, “por que tava andando sozinha?”, “o que você falou pra ele?”, perguntas essas que partem de pessoas próximas ou dos agentes do Estado, não é difícil entender porque as ações de curto prazo não estão funcionando e as de longo prazo precisam ser repensadas para ontem.
Educação contra violência de gênero
Se num curto prazo é preciso fortalecer, ou criar do zero onde não existem, as estruturas que permitam às mulheres denunciarem e terem seu direito à vida garantido, desde o protocolo de atendimento aos serviços de acolhimento delas e os de contenção do agressor, não se pode deixar de pensar no longo prazo. Nesse sentido, o Brasil precisa investir sim em educação escolar para as diversidades de gênero e sexualidade e não de um mandatário provisório que, em meio à pandemia, faça discursos a grupos religiosos prometendo projetos de lei contra a chamada “ideologia de gênero”. Assunto esse com jurisprudência no Supremo Tribunal Federal, que já declarou a inconstitucionalidade de leis do tipo que prometiam banir essas discussões no âmbito escolar.
Ao contrário do que propagam os conservadores, os conteúdos de gênero e sexualidade pouco se referem às atividades sexuais em si e, nem de longe, buscam incentivá-las. Para além de questões como o conhecimento do próprio corpo ou a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, gravidez precoce e abuso sexual, os componentes curriculares buscam falar em igualdade de gênero e diversidade sexual com o objetivo de diminuir as violências e desigualdades e de fomentar uma cidadania mais inclusiva. Violências e desigualdades essas que, quando não são discutidas e repensadas, são naturalizadas e colocam mulheres e a população LGBTs em condições gravíssimas de vulnerabilidade.
Os homens que agridem e matam suas companheiras ou mesmo aqueles que simplesmente não as reconhecem nas rotinas de home office – também esta uma forma de violência psicológica – assim o fazem porque aprenderam que podiam, comungando de uma cultura masculina e machista em que as mulheres são diferentes, delicadas, não necessariamente devem gozar dos mesmos direitos, são mais aptas a cuidar de casa e dos filhos. E o Estado brasileiro precisa reconhecer que tem parte nisso, exatamente por fazer “vista grossa” ou mesmo incentivar esses comportamentos.
Não estamos muito longe dos tempos em que feminicídios – que nem assim eram chamados, pois não eram considerados um tipo penal – e outras violências encontravam justificativas até mesmo na lei, os denominados crimes em “legítima defesa da honra” (vale lembrar que o Código Penal brasileiro nunca teve um artigo que permitisse a absolvição de quem matasse por ter sido traído. O que havia era a interpretação de um artigo do CP em que não era considerada criminosa a pessoa que cometesse um assassinato quando estivesse em um estado emocional alterado. E por esta razão, advogados homens firmaram a tese da legítima defesa da honra). Isso sem falar de uma sociedade brasileira ensinada a ver a violência doméstica como algo corriqueiro, seja nas novelas ou na vizinhança, já que sempre fomos incentivados a “não meter a colher em briga de marido e mulher”.
Por todas as razões expostas aqui, o Estado brasileiro tem sim uma dívida com as mulheres, assim como tem, mesmo que timidamente, reconhecido sua dívida secular com negros e índios. A violência doméstica contra mulheres é sem dúvida alguma uma violação diária aos direitos humanos, uma ferida aberta, exposta, que precisa de vacinas urgentes tal qual o vírus mortal que temos enfrentado.
* Ana Paula Barreto é jornalista formada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pós-graduada em Comunicação Legislativa pela Universidade do Legislativo Brasileiro (Unilegis). Foi chefe de Comunicação da Secretaria das Relações Institucionais da Presidência da República e assessora de imprensa no Senado Federal. Atualmente é responsável pelo comando da comunicação do escritório Cezar Britto & Advogados Associados
* Marcos Aurélio da Silva é doutor em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e professor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). Também é pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Brasil Plural, com estudos sobre relações de gênero e sexualidade, saúde da população LGBT e políticas públicas