Escrevo nesta manhã de sábado, 9 de maio, sem saber se Jair Bolsonaro vai ou não fazer um churrasco para 30, 300 ou 3000 pessoas nos jardins do Palácio da Alvorada, e se o churrasco, caso aconteça, será pago pelo Tesouro ou se o dinheiro virá das contas pessoais do próprio Jair, ou do bem sucedido dublê de político e empresário do ramos de chocolates, o filho Flávio, ou se por meio de transferência bancária de Fabrício Queiroz para a da primeira dama Michelle.
Mas, em fazendo o churrasco, que Jair não deixe de incluir entre os convivas seus principais fiadores morais, os generais Augusto Heleno, Hamilton Mourão – sempre nessa ordem – e Walter Braga Neto, e que ordene ao general intendente Eduardo Pazuello a compra dos insumos necessários, da picanha à linguiça, da cachaça ao limão, à hidroxicloroquina.
(A propósito de Pazuello, abro aqui um parêntese de utilidade pública para esclarecer aos eventuais leitores destas mal traçadas, não necessariamente versados em assuntos das casernas, para que serve a intendência militar, conforme disposto na página do Exército Brasileiro, no site do Ministério da Defesa:
“O Serviço de Intendência é a parte da logística voltada para as atividades de suprimento. Ele distribui o material de intendência (uniformes, equipamentos individuais, etc) e os diversos tipos de munição e de gêneros alimentícios. Proporciona também, em operações, outros serviços como lavanderia e banho. Nas organizações militares os intendentes assessoram os comandantes na administração financeira e na contabilidade.”)
Fechado o parêntese, volto ao churrasco, imaginando que o general Pazuello, hoje, graças ao seu notório saber sanitário, secretário executivo do Ministério da Saúde, não deixará de acrescentar à sua lista de compras uma garrafa de espumante, qualquer um do Vale dos Vinhedos, para que o alto comando lá presente possa brindar à plena recuperação do general Octávio Rêgo Barros, o 24o membro do entorno presidencial alvejado pela Covid 19. E que não se esqueça de incluir entre os convidados o ilustre presidente do Superior Tribunal de Justiça, João Otávio Noronha, conhecida paixão antiga do Jair, como confessado recentemente pelo próprio quando da cerimônia de posse dos novos Ministro da Justiça e Advogado Geral da União.
Claro que, em acontecendo, o churrasco será devidamente documentado pelo vereador Carlos e deputado federal Eduardo para, ao final do dia, abrilhantar a live que seu orgulhoso progenitor fará, tendo ao lado o vice-ministro da Saúde, Nélson Teich, para informar aos brasileiros sobre os mais recentes insucessos das negociações com o governo chinês, visando a aquisição de respiradores mecânicos, apesar dos esforços para esse fim envidados pelo sinistro Ernesto Araújo.
E aqui, antes de ser tentado a mal falar de Abraham Weintraub, pauso para pedir, a quem eventualmente me ler, perdão pela canhestra paródia acima.
E tento me justificar
Quando comecei a pensar sobre o que escrever a propósito da imensa tragédia, humana e política que abate a sociedade brasileira hoje, sabendo que queria de algum modo falar sobre o mal e a maldade, fui ao Livro de Jó, Hanna Arendt, abusei da minha erudição wiki, para recorrer a alguma coisa de Tomás de Aquino ou Santo Agostinho, aprendi um pouco sobre João Calvino, lamentei jamais ter lido Kant, para além de referências indiretas, deparando-me com a dura realidade, à luz do que pensara fazer, de que a vida não havia me preparado para uma reflexão mais profunda sobre o mal e a maldade.
A paródia me surgiu então como uma alternativa, como se o absurdo de um churrasco festivo no coração do poder executivo, emoldurado por um quadro de, em números daquele instante, 10 mil mortos e 150 mil infectados pelo novo coronavírus, pudesse ilustrar melhor que tudo a maldade absoluta, sem disfarce, que faz de Jair Bolsonaro um ser abjeto e desprezível.
Nestes dias de isolamento, privilegiado por condições pessoas favoráveis, posso me dedicar a leituras e releituras, que ajudem a desviar minimamente a atenção da maldade e da tragédia que hoje nos cerca. A releitura do momento é a biografia de Nélson Rodrigues, O Anjo Pornográfico, escrita por Ruy Castro. Das muitas brilhantes coisas que Nélson produziu no jornalismo, o ganha pão que o permitiu transformar-se no maior dos nossos dramaturgos, foram as crônicas do cotidiano, que ele batizou de A Vida Como Ela É.
Hoje, não temos alternativa, os democratas que alimentam alguma esperança de o pesadelo político que vivemos possa logo começar a acabar, de ver e dizer as coisas como elas são. Não mais nos é dado o direito de medir palavras, como Nélson jamais mediu em seu teatro transgressor.
Jair Bolsonaro, esse ser abjeto, nos eliminou tal direito, ao não nos poupar da sua maldade, atirando sobre nossa cara diariamente ustras e curiós, debochando, escarnecendo, convicto de que fardas, togas, milícias e sua legião de fanáticos canarinhos o protegerão para sempre das suas palavras e atos desprezíveis.
Mas, o que fazer?
Ao abrir as páginas de O Globo esta manhã, deparei-me com uma manchete, que me lançou imediatamente a um nirvana intelectual, a uma França libertária de séculos passados, pela voz pausada e melosa do justiceiro dândi da Lava Jato, Luís Eduardo Barroso: “O Brasil precisa de um choque de iluminismo”. Data vênia, permito-me contradizer o iluminado ministro, afirmando que o Brasil precisa de mais líderes com vergonha na cara. Vergonha para não fazer como o seu colega de STF, José Luiz Dias Toffoli, com seu hábito de esgueirar-se ao cair da tarde pelos desvãos do Alvorada, para, junto provavelmente com seu ex-assessor, hoje seu proto-superior, Fernando Azevedo, mais uma vez passar o pano em Jair Bolsonaro, sob o pretexto de evitar uma ‘crise institucional’.
A crise, não há como fugir, está instalada, e o seu retrato mais fiel são as retroescavadeiras abrindo covas em Manaus, para sepultar vítimas da Covid 19. E esta crise nos coloca, como, de certo modo, pode estar já se colocando para as médicas, enfermeiros, e outros profissionais de saúde, que trabalham, sofrem e se expõem à doença nas UTIs, diante de uma escolha de Sofia.
O processo de impeachment de Jair Bolsonaro é imperativo e urgente, e nele não cabem cálculos políticos e eleitorais de ordem alguma, ainda que no horizonte, como já escrevi em outra ocasião, esteja a figura de Hamilton Mourão.
Jair Bolsonaro e seus 01, 02, 03, 04 precisam ser varridos da política, e não há outra saída que não seja pelo impedimento, ou pelas mãos de Celso de Mello ou pelas de Rodrigo Maia. Um processo de impedimento que seja hoje instalado não vai aumentar o sofrimento dos brasileiros e brasileiras, não vai fazer aumentar o ritmo das mortes pela Covid 19, mais do que já o fez aumentar, e o poderá fazer ainda mais, dada a maldade visceral de Jair Bolsonaro. Um processo de impeachment que seja hoje instalado nos fará purgar mais uma vez males políticos e morais. Mas isto não importa, porque, por mais que as chances de seu expurgo da política brasileira sejam hoje irrisórias, o processo nos dará uma chance, mesmo mísera, de não vê-lo prolongar-se no poder, sabe-se lá por quanto mais tempo, acumulando maldades e pondo em risco deliberado a vida de milhares de pessoas.
Sobre Hamilton Mourão, gostaria de pensar que lá de longe, dos confins de Pernambuco, Lungo, o cangaceiro pop de Bacurau, mais cedo ou mais tarde, virá nos salvar. Mas Lungo é um personagem de ficção, e o vice Mourão é a realidade dura que nos encara.
Toda luta tem um custo, e não se trata, registro, de escolher entre o mal e o ‘mal menor’. O mal é um valor absoluto, e sei que não se pode relativizá-lo. Mas, toda luta pode nos levar a momentos de recuo, para respirar, poupar energia, e voltar a ela. Como toda luta pode nos levar também à decisão, muitas vezes quase suicida, de romper o cerco, para tentar escapar com vida. Acredito que tenhamos chegado a este segundo momento. O de encarar a tragédia, ou sucumbir a ela.
*Professor Emérito da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB)