No final do século passado apresentei um projeto de lei que foi aprovado no Senado e atropelado na Câmara dos Deputados depois de muitos anos. Era muito simples, tinha apenas um artigo: estabelecia uma cota mínima de 20% para a população negra no preenchimento das vagas nos concursos para investidura em cargos e empregos públicos dos três níveis do Governo, nos cursos de graduação em todas as instituições de educação superior do território nacional e nos contratos do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior.
Dois anos depois, em 2001, houve, na África do Sul, uma conferência internacional contra o racismo e a discriminação racial. O então Presidente da República, Fernando Henrique, determinou que a delegação brasileira levasse a proposta de cotas raciais para o ingresso na universidade. Lembrei meu projeto e a resistência que se levantara da inconstitucionalidade da ação afirmativa, tolice que acabou sendo desfeita pelo pronunciamento de vários Ministros do Supremo. Mas ainda sofri insultos na imprensa de pessoas convictas de que o projeto revogava o sistema de promoção do mérito.
Minha posição era clara e tinha antecedentes. Ao entrar na política aproximei-me muito de Afonso Arinos de Mello Franco, que, poucos anos antes, conseguira aprovar a lei que leva seu nome. Em 1961 — há mais de sessenta anos — fiz o primeiro discurso na Comissão de Políticas Especiais das Nações Unidas sobre o regime brutal do apartheid na África do Sul. Presidente da República, afirmei em meu primeiro discurso nas Nações Unidas que o Brasil era um país mestiço e nossa condenação total ao apartheid. Criei a Fundação Palmares, para a inserção e a promoção social da raça negra.
Meu projeto foi substituído, na Câmara dos Deputados, pelo Estatuto da Igualdade Racial. A pedido do Senador Paulo Paim, abri mão da preferência de meu projeto. Acontece que o Estatuto não estabeleceu as cotas. Só mais tarde a Presidente Dilma Rousseff apresentou propostas que se transformaram em lei, em 2012, estabelecendo cotas para as universidades federais e, em 2014, cotas para os concursos públicos federais. Foi um grande sucesso, que desmentiu completamente os argumentos da meritocracia, pois os alunos negros tiveram resultados superiores aos dos alunos brancos.
Essas leis precisam agora de continuidade, porque estabeleciam prazos para a duração da ação afirmativa que já estão próximos de vencer.
Ainda defendo meu projeto, que era mais amplo. Por ele, teriam cotas não só as instituições de ensino superior federais — mas todas, públicas ou privadas —, e não só os empregos públicos federais, mas estendia-se aos três níveis de governo.
José Bonifácio, há duzentos anos, falava na necessidade de dar educação e terra para os escravos, que pretendia libertar. Temos uma dívida impagável que nos obriga a dar a seus descendentes a mesma participação na sociedade que aos demais brasileiros.
Fui o primeiro a no Congresso a apresentar a solução das cotas. Elas são necessárias não por um problema étnico ou político, mas para promover a ascensão social, a saída da pobreza, o acesso ao trabalho qualificado.
Muitos tiram proveito político ao tratar do assunto. Por isso escondem meu pioneirismo. Eu nunca quis dividendos políticos. Quero resolver a questão.
– José Sarney é ex-presidente da República, ex-senador, ex-governador do Maranhão, ex-deputado. Escritor. Imortal da Academia Brasileira de Letras