Para os brasilianos esclarecidos, moderados e de boa-fé pode ser difícil entender como pessoas esclarecidas, moderadas e de boa-fé persistem a apoiar o presidente Jair Bolsonaro. A conclusão mais rápida é acreditar que este contingente inexiste. Ou se é esclarecido, moderado e de boa-fé, ou se apoia o capitão-mor.
Afora este dilema machadiano, questão prenhe de questões, estes brasileiros existem. Independentemente de suas índoles, milhões de seguidores continuarão a conviver com os demais compatriotas após a saída do “mito” da Presidência da República, não se sabe como nem quando.
Ódio não rima com fraternidade
Bolsonaro já foi caracterizado com uma variegada porção de adjetivos depreciativos. Numa tentativa de abarcar suas características mais evidentes, o capitão-mor pode ser definido como ser desprezível, pregador do ódio e animador da discórdia. Qualificadores que não rimam com paz, tolerância, harmonia, fraternidade, respeito, equilíbrio, verdade. Tampouco com moderação, de rima fácil.
Do outro lado, milhões de antibolsonaristas estupefatos. Legião vasta, que vai da chamada esquerda aos liberais e conservadores que não se veem representados pelo capitão-mor, passando pelos eleitores que se arrependeram de ter apoiado Bolsonaro no pleito de 2018.
No lugar de encarar que esta militância da chamada direita está entre nós, torna-se mais cômodo nominar todos que o apoiam como celerados ou gente do mal. Se, a esta altura do governo, alguém apoia este governo é obviamente conivente com os malfeitos do presidente, raciocinam brasileiros aturdidos. Generalizações de pouca utilidade na luta política que se anuncia, com ruas conflagradas e redes inda mais antissociais, tão logo conquistemos uma imunidade significativa contra a covid-19. Como argumentou Pablo Ortellado, será difícil converter esta gente “depois de passar quatro anos chamando-os de fascistas“.
O golpista
Assim como petistas não são um grupo uniforme, bolsonaristas compõem-se de nuanças diversas. A estereotipia mais assimilada pelos adversários descreve o bolsonarista como um ser bronco, beligerante, crédulo e intolerante, personificado pelo militante golpista, consumidor de cloroquina e negacionista.
São os que apostam todas as fichas no poder discricionário do “mito”. Assim como o Flautista de Hamelin, ele os conduzirá. “Ouviu-se um rumor de tropa a marchar / E esse rumor tornou-se um roncar / E esse roncar um forte ribombar”, versejou Robert Browning, autor The pied piper of Hamelin, na tradução de Ana Maria Chaves. “Pulando e saltando, seguiam submissos / A música mágica entre gritos e risos”.
O crente
Entre os tantos que seguem o líder, há outras castas. Para os religiosos, como os evangélicos, Bolsonaro significa a certeza de que a família cristã, casta e indissolúvel, resistirá à decomposição ateia encarnada pela chamada esquerda. (Tolice, pois há na esquerda também quem rejeite a pauta dos costumes, como o peruano Pedro Castillo). Com Bolsonaro, a identidade sexual prosseguirá restrita aos gêneros masculino e feminino, sem as incontáveis variações catalogadas na interminável sigla LGBT+.
Toda a vez que uma emissora de TV promove a liberdade sexual ou aventa a descriminalização das drogas gera mal-estar, nutrindo este grupo que teme pela dissolução dos valores cristãos. Foi assim com o #EleNao, tomado, a princípio, como movimento enfraquecedor da candidatura de Bolsonaro, em 2018. As imagens lúbricas dos protestos, no entanto, fortaleceram esta casta menos mobilizada, mas numerosa, cujos temores são facilmente compartilhados em cultos e missas celebrados em todas as esquinas do Brasil.
O liberal
Liberais, que buscam um estado menor e uma economia mais competitiva, creem, mesmo que decepcionados, ser o bolsonarismo menos estatólatra do que o petismo. Como se sabe, a chamada esquerda adora uma estatal.
Bolsonaro não parece nada diferente. Desde que assumiu vem tentando domar aos poucos as entranhas mais sensíveis do Estado, como a PGR, o Ibama, o Coaf, a PF e, claro, o Congresso Nacional. Tal qual o PT, tem pretensões hegemônicas. Portanto, precisam, um e outro, ampliar o tamanho do Estado, não reduzi-lo. A ilusão do Bolsonaro liberal pode ser apenas estratégica, com fito eleitoral e lastreada no Posto Ipiranga. Mas parece funcionar.
O oportunista
Há, também, os aliados de ocasião. Partidos, políticos e empresários que vivem e se reproduzem às expensas do poder. Grupo poderoso, mas volátil. Se hoje apoiam o capitão-mor, amanhã jogarão no time adversário. Sabem que, enquanto nosso sistema partidário se mantiver fluido e inchado, serão sempre titulares.
A casta de apoiadores do capitão-mor mais representativa, porém, parece ser a dos antipetistas. Bolsonaro é o anteparo a tudo o que o PT significa, como a corrupção recorde, uma agenda progressista de costumes, o estatismo retrógrado, crise econômica. Não há, até aqui, candidato que melhor projete um futuro sem o PT do que Bolsonaro. O moderado desconhecido, quem poderia esgarçar os extremos radicais em 2022, precisaria exibir a segurança de que o ideal petista não voltará, além de agregar valores que o bolsonarismo ostenta de maneira fraudulenta.
Enfim, esta multidão escanchada em sua garupa não é uniforme. Bolsonaro, a “bizarra figura” de Hamelin, tirou-os do anonimato e conduziu-os às ruas, donde não deverão sair – ao contrário da lenda alemã. A derrota de Bolsonaro não representará o fim do bolsonarismo, ainda que renomeado, mas o acirramento da radicalização política brasiliana. Como pontuou o Estadão, “em qualquer dos casos, o vencedor certamente aprofundará a discórdia entre os brasileiros“. Extremos se retroalimentam, crescem na desavença, chafurdam na intolerância. Enquanto se alternarem no poder, petismo e bolsonarismo alimentarão a cizânia como práxis social.