Rússia, uma charada embrulhada num mistério

A guerra deixou visível a ponta do iceberg de um mundo pós-Ocidental. Num futuro, provavelmente próximo, estaremos mergulhados nesse mundo extremamente instável e conturbado, em que a crise geopolítica virá se somar a tantas outras.

Explosão na capital ucraniana Kiev – Foto Gabinete do Presidente da Ucrânia via EBC

Ao comemorar um ano, a guerra da Rússia contra a Ucrânia não avançou um milímetro rumo à paz. Não se vislumbra neste momento, apesar da resolução da ONU (votada pelo Brasil) exigindo a retirada das tropas invasoras e a favor de uma paz justa, nenhuma possibilidade de negociação, nem sequer de diálogo. Ao contrário, depois de mais de 300 mil mortos, nos próximos meses o risco é a multiplicação do número de vítimas. Moscou prepara a grande ofensiva da primavera, que, segundo Zelenski, já teria começado. O ocidente acelera o fornecimento de armas à Kiev e se prepara para um conflito duradouro.
Putin, escrevia o Financial Times, “só ouve Ivan, o Terrível, Pedro, o Grande, e Catarina, a Grande. Para ele e para os seus émulos, a captura da Ucrânia é um desígnio da Santa Rússia reclamado pela História grandiosa dos seus heróis. No discurso sobre o estado da nação, esta semana, o déspota do Kremlin referiu-se à guerra como uma ameaça do Ocidente à existência da Rússia, repetindo o que vários Romanov, Lenine ou Staline disseram”.

“Muito claramente, a hora não é de diálogo”, anunciou o presidente francês, Emmanuel Macron, na Conferência de Segurança de Munique, onde aproveitou para fazer o seu mea culpa por ter acreditado na palavra de Vladimir Putin.

“Há um ano falei com Putin e ele assegurou-me que o grupo de mercenários Wagner não tinha nada a ver com ele – que era apenas um projeto empresarial. Acreditei nisso. Hoje vemos que o grupo Wagner está envolvido na guerra russa contra a Ucrânia. Tornou-se numa nova ferramenta mafiosa para criar crimes e injustiça”.

Para quem não sabe, Wagner é uma organização paramilitar de origem russa, que se apresenta como uma espécie de empresa militar privada, uma rede semioficial de mercenários ligado ao governo russo, que atua em várias regiões pelo mundo, sobretudo no Donbass, leste da Ucrânia, Síria e África. Muitos descrevem o Grupo Wagner como sendo um grupo de fachada do Departamento Central de Inteligência (GRU) das Forças Armadas Russas, utilizado como braço de apoio em conflitos onde a Rússia está engajada. O grupo recebe equipamento e usa instalações das Forças Armadas Russas.

Olaf Scholz, primeiro-ministro da Alemanha – Foto Reprodução/Redes sociais

Em Munique, os dois países motores da construção europeia falaram de uma só voz. “Penso que é sensato que nos preparemos para uma guerra longa”, disse o chanceler alemão Olaf Sholz, que salientou a necessidade de armar a Ucrânia. “Não são as armas que fornecemos que prolongam a guerra, é exatamente o oposto. Quanto mais cedo o presidente russo perceber que não conseguirá atingir o seu objetivo imperialista, maiores são as probabilidades desta guerra acabar em breve e da tropa conquistadora russa bater em retirada.”

Os tambores de guerra soam e o ocidente parece acreditar que a Ucrânia pode ganhar a guerra. Ou sonha com isso. Temem que após uma eventual vitória russa na Ucrânia eles serão os próximos alvos.

O fato do conflito ter a Europa como palco não é um mero detalhe.

Pacto germano soviético assinado por Molotov-Ribentrop

Além de partilharem a  cultura europeia, os ucranianos surpreendem ao resistir à agressão de um inimigo que, além dos horrores que já praticou na Ucrânia, pretende ir mais longe e, se o deixarem, atingirá a UE e os seus regimes democráticos. Isto é particularmente claro nos países da zona tampão dos tempos da URSS (criada a partir do pacto germano-soviético assinado por Molotov-Ribentrop), que têm mostrado solidariedade ativa com a Ucrânia. Esses países conhecem o sentimento hegemônico do gigante russo desde os tempos do império czarista, tanto assim que aderiram todos à OTAN, para obter proteção. Temem que após uma eventual vitória russa na Ucrânia eles serão os próximos alvos.

O poderoso Exército russo foi humilhado, para surpresa de muitos observadores ocidentais que sobrestimavam a sua força (e, sobretudo, a sua qualidade), enquanto se enganavam nos efeitos das sanções econômicas, até hoje pouco eficazes.

Presidente da Rússia, Vladimir Putin – Foto Reprodução EuroNews

Putin, segundo o jornal Público, de Lisboa, errou os cálculos e os ucranianos ridicularizaram os seus sonhos imperiais. Mas jamais se confessará vencido e será tentado por uma grande escalada. Esta aliás já começou com os ataques às infraestruturas e a objetivos civis, procurando vergar a Ucrânia pela exaustão. Mas é altamente improvável que Moscou consiga obter vitórias militares decisivas.

A parte mais forte, a Rússia, não consegue vergar a mais fraca. Enquanto a a parte mais fraca, a Ucrânia, não pode vergar a mais forte. Sem soluções militares, restam as opções diplomáticas, mas também aí não há soluções à vista. A Ucrânia, prometem Biden e os aliados europeus, não pode perder um centímetro do seu território. Mas a Rússia jamais admitirá negociar a paz sem recuperar a Crimeia, que lhe pertenceu, de fato,  do século XVIII até 1954.

Winston Churchill

Winston Churchill escreveu um dia que “a Rússia é uma charada embrulhada num mistério dentro de um enigma”.

A leitura da extrema-direita europeia (com exceção da Itália de Giorgia Meloni) e de uma parte da extrema-esquerda, relativiza a gravidade da invasão, já que, em última instância, seriam os EUA e as forças militares submetidas a Washington os verdadeiros responsáveis, por terem montado “um cerco à Rússia”. Ou seja, sugerem que o conflito não é uma questão de invasão ilegal de um país – a Ucrânia – por outro – a Rússia -, mas sim uma proxy war da Rússia com a OTAN e o Ocidente, que no fundo exprime uma atitude nostálgica e “ocidentalofóbica”.

Os que pensam assim são nostálgicos dos tempos da Guerra Fria e da URSS, da divisão do mundo em zonas de influência, em que cada país teria uma soberania limitada em termos de política externa e de alianças geopolíticas face à potência dominante. Assim, as Repúblicas Socialistas Soviéticas (como os Bálticos, a Ucrânia, a Moldávia, os países do antigo Pacto de Varsóvia), seriam “o quintal dos russos”. Enquanto a América Latina e a Europa ocidental seriam “o quintal dos Estados Unidos”.

Início da Guerra Fria

Para a esquerda stalinista, a leitura é simples: o inimigo do meu inimigo é meu amigo; logo, apoia-se a Russia contra o Ocidente liderado pelos Estados Unidos.

A guerra levou a Europa a olhar para o passado, para os conflitos que a destruíram na primeira metade do século XX, e que acreditava enterrados para sempre. Foram precisos 11 meses de resistência ucraniana para que os líderes europeus percebessem que esta é uma guerra europeia. E que o fim do caminho levará à integração de Kiev à União Europeia. Os líderes europeus, na sua maioria, perceberam que é essa a sua missão neste momento preciso da história da Europa. Como escreveu o jornal Le Monde, em editorial, “se a guerra russa começou como uma ameaça existencial para a Ucrânia, transformou-se, um ano depois, numa ameaça existencial para a Europa”.

Putin, escreve a analista Teresa de Sousa, cometeu um erro colossal: “quanto mais intensificar os combates, quanto mais destruição causar, quanto mais crimes de guerra cometer, maior será o apoio e a solidariedade europeus.

Macron e Zelensky

Não se trata apenas de uma questão de dever de solidariedade para com um povo que sofre a brutalidade do agressor. É uma questão de avaliação geopolítica. No Palácio do Eliseu, ao receber Zelensky em 9 de fevereiro, na companhia de Scholz, Macron foi explícito: “A Rússia não pode vencer, não deve vencer.” Macron abandonou seu discurso sobre “garantias de segurança” para Moscou e a necessidade de “não humilhar” Putin. Em dezembro passado, já tinha prometido apoiar a Ucrânia “sem falhas, até à vitória”. Falta à França aumentar o seu apoio militar à Kiev, a exemplo de Londres e Berlim. Os sinais são inequívocos, a Europa vive o pior conflito desde a 2° Guerra Mundial.

O fato de Suécia e Finlândia abandonarem a neutralidade para bater à porta da Aliança Atlântica é significativo. Por outro lado, os países bálticos olham para a Ucrânia e vêem o legado de opressão  durante a era soviética: execuções e prisões em massa, expropriações, deportações em massa para o gulag etc. E as minorias russófilas nestes países não são mais do que os descendentes dos colonos que Stalin lá plantou para dominar esses países, onde a língua oficial era – por imposição do Kremlin – o russo.

Susi Dennison

Para Susi Dennison, investigadora de assuntos políticos no European Council on Foreign Relations, “a guerra em curso na Ucrânia fomentou a união do Ocidente e da Europa em particular, além de expor um abismo entre a percepção do Ocidente sobre a Rússia e a de outros países.”

“Um ano após a invasão russa,  está em curso uma remodelação determinante da ordem internacional. O Ocidente, unido pela primeira vez em anos, redescobriu o seu propósito. Entretanto, noutras latitudes, há uma competição crescente pela liderança geopolítica entre as potências emergentes.

Na Europa, o conflito suscitou preocupações quanto à capacidade do continente de se defender e à escala do seu apoio ao esforço de guerra ucraniano, com as ofensivas de primavera a se aproximarem. Ao mesmo tempo, também pôs a nu a complexidade da UE se retirar, a longo prazo, da dependência que há muito tem da energia russa.”

A opinião pública europeia está convencida da necessidade de apoiar a Ucrânia na sua luta. Uma nova pesquisa, levada a cabo em dez países europeus, bem como na Índia, na Turquia, na China e na Rússia – divulgada pelo European Council on Foreign Relations constatou que os europeus continuam unidos no seu apoio à Ucrânia e no seu desejo de ver a Rússia derrotada no conflito.

Apesar das dificuldades no abastecimento energético do bloco e dos danos  causados nas economias nacionais, a Europa mantém o  embargo ao combustível russo. Quanto à percepção que os europeus têm da Rússia, mais de dois terços dos cidadãos da UE (66%) e da Grã-Bretanha (77%) vêem a Rússia como um “adversário” ou“rival”, contra 71% dos americanos.

Wang Yi, membro do Comitê Central do Partido Comunista da China – Foto Ministério das Relações Exteriores da China

Há um abismo entre a percepção do Ocidente sobre a Rússia e a de outros países. Embora exista alguma semelhança em quererem o fim do conflito, as condições em que isto pode ser conseguido diferem. Na Europa e nos EUA, por exemplo, a opinião predominante é a de que a Ucrânia precisa de recuperar todo o seu território, mesmo que isso signifique uma guerra mais prolongada. Já na China, Turquia e Índia, a maioria prefere um fim rápido da guerra, mesmo que isso signifique que a Ucrânia ceda uma parte de seu território à Rússia.
O resultado mais relevante revelado pelo estudo mostra como os cidadãos vêem o estado do mundo e a futura ordem global. No Ocidente, o legado da Guerra Fria continua a moldar a opinião pública. Há uma forte convicção de que estamos entrando novamente num mundo bipolar, liderado, respectivamente, pelos EUA e pela China. Mas, noutros países, em particular entre potências emergentes, como a Índia e a Turquia, a visão é outra. Seus habitantes vêem  seus países como atores em crescimento no panorama internacional e prevêem o desenvolvimento de uma ordem mundial multipolar, dividida entre diversos centros de poder. O Ocidente seria apenas um polo dentre muitos, e não seria nem o definidor da ordem internacional nem o líder da democracia global.

Os próximos meses serão determinantes para a construção deste mundo pós-Ocidental cada vez mais dividido. A guerra deixou visível a ponta do iceberg. Num futuro, provavelmente próximo, estaremos mergulhados num mundo novo, extremamente instável e conturbado, em que a crise geopolítica virá se somar a tantas outras.

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