Agora que os russos estão há quase um mês destruindo sistematicamente a Ucrânia, assassinando civis em massa e já tangeram para o exterior um em cada dez ucranianos, lembrei-me de um artigo que escrevi quando li um livro intitulado A guerra não tem rosto de mulher, de Svetlana Aleksiévitch, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura de 2015. A obra descreve os horrores vividos pelas mulheres russas na Segunda Guerra Mundial.
Svetlana escreveu outro livro sobre outra guerra, a do Afeganistão, em que os russos se atolaram em 1979, quando entraram naquele país para defender um regime que seria, em tese, socialista com o deles. Para lá os governantes soviéticos enviaram cerca de cem mil jovens, que regressaram física e mentalmente destruídos. Desses, cerca de 15 mil voltaram – quase sempre dilacerados por explosões de minas – em ataúdes metálicos. Daí o título do livro: Meninos de zinco. A mídia fala agora que os russos já perderam na Ucrânia entre 7 e 14 mil soldados. Quase o mesmo número da década em que mataram e morreram nas montanhas afegãs. Não, nem sempre a história se repete como farsa. É bastante comum que se reproduza como tragédia.
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A seguir, a resenha de A guerra não tem rosto de mulher, escrita em 2015:
A menina Svetlana Aleksiévitch, nascida em 1948 na Ucrânia, não gostava de livros de guerra, numerosos em sua casa, mas na escola – na Bielo-Rússia, onde cresceu – era obrigada a lê-los. “Estivemos sempre a combater ou a preparar-nos para a guerra… Na escola, ensinavam-nos a amar a morte”. Ao seu redor, todos liam. Afinal, eles, os soviéticos, haviam sido os vencedores do conflito recente contra os alemães.
“Depois da guerra, a aldeia da minha infância era feminina… Não me lembro de vozes masculinas”, escreve Svetlana na abertura de A guerra não tem rosto de mulher (Companhia das Letras, 2016, 392 páginas). Os homens eram poucos porque milhões deles haviam morrido na Grande Guerra Patriótica (assim chamada pelos soviéticos). A Bielo-Rússia teve dizimado um terço de sua população. A Rússia perdeu cerca de 22 milhões de pessoas.
Svetlana formou-se em jornalismo em 1972. No final daquela década, resolveu escrever um livro sobre os seres humanos na guerra. “Não escrevo a história da guerra, mas a história dos sentimentos. Sou historiadora da alma”. Passou a colher depoimentos de mulheres que haviam atuado no Exército Vermelho. Surgiria então um estilo (literário, jornalístico?) que décadas depois seria consagrado com o Nobel de Literatura (2015).
O efetivo feminino das forças soviéticas chegou a um milhão. Svetlana parou de contar suas entrevistadas quando elas ultrapassaram 500. Gravou longas conversas com lavadeiras, cozinheiras e enfermeiras, mas também com franco-atiradoras, pilotos de aviões de caça e comandantes de artilharia. Entre elas encontrou “narradoras espantosas”.
Das confissões dessas mulheres Svetlana pinçou os trechos mais impactantes ou tocantes. Quase sempre devastadores. E com eles montou um livro-mosaico que foi recusado por muitas editoras antes de chegar ao prelo, em 1985, já nos estertores do comunismo. A obra vendeu dois milhões de exemplares nos primeiros cinco anos.
Escritos polifônicos
Com a técnica de traçar vastos painéis a partir de incontáveis narrativas de pessoas comuns, Svetlana produziu outros escritos polifônicos sobre sofrimento e coragem. Entre seus livros publicados, destacam-se Meninos de zinco (sobre os jovens russos que, sem saber o motivo, lutaram no Afeganistão); O fim do homem soviético (sobre a desilusão dos que cresceram durante os anos em que o comunismo garantia emprego a todos os que não abrissem o bico para criticar o regime); e Vozes de Tchernóbil (relatos dos que sobreviveram à grande catástrofe nuclear).
Desmontando mentiras
Ao contrário dos livros sobre a guerra escritos por (e para) homens, a obra de Svetlana não apresenta heróis nem proezas incríveis, não descreve batalhas nem gaba armamentos. Mostra apenas “as pessoas ocupadas na sua atividade humana e simultaneamente desumana”. Dor, fome, frio, desespero, infestação por piolhos e mutilados, muitos mutilados, estão em cada uma das páginas.
Svetlana confessa que, com este livro, pretendia desmontar todas as mentiras tramadas em torno das guerras, de modo que a palavra guerra passasse a provocar náusea e que a simples ideia de que pudesse existir fosse repugnante. Desejava, enfim, que seu trabalho “faça vomitar os próprios generais…”
A obra é dividida em 17 capítulos. Nos primeiros vemos o entusiasmo das moças que faziam de tudo a fim de serem convocadas para enfrentar os nazistas, que haviam invadido a Rússia e que logo chegaram à periferia de Moscou. Mas também fica clara a resistência dos chefes militares que não desejavam ter garotas na frente de combate.
A primeira versão de A guerra não tem rosto de mulher sofreu vários cortes impostos pelos censores. A versão mais recente traz alguns dos trechos eliminados. Num deles, num dos poucos depoimentos masculinos, um soldado fala sobre o avanço pela Alemanha derrotada no final de guerra: “Somos jovens. Fortes. Há quatro anos sem mulher. Apanhávamos garotas alemãs e… Dez homens violavam uma. Apanhávamos meninas… Doze treze anos… Se chorassem batíamos, metíamos qualquer coisa na boca… A única coisa que temíamos era que nossas colegas descobrissem…”
O bebê debaixo da água
Uma aviadora que se recusou a ser entrevistada disse a Svetlana por telefone: “Durante três anos não me senti mulher. O meu corpo adormeceu. Fiquei sem menstruação, quase sem desejo feminino”.
Uma mulher fala do que uma de suas amigas fez para sobreviver na época da grande fome na Ucrânia: “Morreram o pai, a mãe e os irmãos mais pequenos, e ela só se salvou porque de noite roubava estrume de cavalo para comer”.
Uma enfermeira para diante de um jovem capitão que agoniza e pergunta em que pode ajudar. Ele sorri. “Desabotoe a blusa. Mostre-me seu peito”. Desconcertada, ela corre. Uma hora depois ela volta. O capitão está morto.
Membros da resistência russa estão num pântano cercados por alemães. Uma das mulheres tem um bebê recém-nascido no colo. A criança chora de fome porque a mãe, desnutrida, não tem leite. Sem que alguém fale, a mulher compreende que só há uma solução para não serem descobertos. “Mete o embrulho com o bebê debaixo da água e o mantém ali durante muito tempo”.
Uma das mulheres regressa da guerra. A mãe permite que descanse em casa por três dias. Depois lhe dá uma trouxa e manda que se vá: “Tens duas irmãs mais novas. Quem é que vai desposá-las? Sabem todos que estiveste na guerra quatro anos com os homens”.
Outra fala de sua desilusão ao fim dos combates. “Pensávamos que tudo ia mudar… Stálin acreditaria no seu povo… Foram presos os que caíram prisioneiros, os que sobreviveram aos campos de concentração, os que foram levados pelos alemães para trabalhar, todos os que tinham ido à Europa e podiam contar como o povo vivia lá”.
O potrinho
Depoimento de uma franco-atiradora: “Confesso que tinha medo de agarrar no fuzil… Aprendemos a desmontar a arma de olhos fechados, a determinar a velocidade do vento, o movimento do alvo, a distância até o alvo… Regressei da guerra grisalha. Com vinte um anos, já estava toda branquinha… Passamos três dias comendo só pão seco, as línguas ficaram tão ásperas que mal as podíamos mover… De repente vemos um potrinho na faixa neutra… Nem tive tempo de pensar, com a força do hábito, apontei e disparei. As pernas do potro dobraram-se e ele caiu para o lado… À noite trazem o jantar. Os cozinheiros dizem: “Muito bem, atiradora. Hoje temos carne na panela”… Desatei a chorar e corri do abrigo… As colegas correram atrás de mim e me consolaram… Pegaram nas marmitas e começaram a comer… Ele vê o meu uniforme, as condecorações e pergunta: ‘Quantos alemães mataste?’. Respondo: setenta e cinco…”
Uma enfermeira aproxima-se de um soldado ferido que tem o braço quase arrancado, seguro apenas por tendões. Procura faca ou tesoura para cortá-lo. Não as encontra na bolsa. “O que fazer? Pus-me a cortar aquela carne com os dentes…”
Uma instrutora da companhia de fuzileiros: “Durante a marcha caminhávamos três pessoas de mãos dadas, e a do meio dorme uma hora ou duas. Depois trocamos. Cheguei até Berlim. Escrevi na parede do Reichstag: Eu, Sofia Kuntsévitch, cheguei aqui para matar a guerra”.
Uma agente de saúde conta que, para se livrar do assédio, ligou-se ao comandante do batalhão: “Era boa pessoa, mas não o amei… Poucos meses depois entrei no abrigo que ele ocupava. Que saída tínhamos? Vivíamos rodeadas por homens, pelo que era preferível viver só com um do que com medo de todos…”
“Como é que a Pátria nos recebeu?”, indaga uma franco-atiradora. E ela mesma responde: “Os homens não diziam nada, mas as mulheres… Gritavam conosco: ‘Sabemos o que vocês fizeram por lá… Seduziram nossos homens… Putas da frente… Galinhas das trincheiras…’”
Uma mulher da resistência regressa à Minsk e descobre que seu marido está na prisão por ter sido prisioneiro dos alemães. Ali, partiram-lhe as costelas. “Antes, na prisão fascista, esmagaram-lhe a cabeça e quebraram-lhe o braço… Em 1945 o NKVD acabou por torná-lo inválido”.
Uma telefonista fala sobre a entrada dos russos na Alemanha vencida: “Escrevem pouco sobre isso, mas é a lei da guerra. Os homens passaram tantos anos sem mulher, além disso há ódio. Entramos numa vila ou aldeia. Os primeiros três dias são para saquear… Apareceram cinco mocinhas alemãs para falar com o comandante do nosso batalhão… Choravam… Foram vistas por um ginecologista… Tinham feridas. Feridas rasgadas…. Mandaram formar o batalhão… Disseram a essas moças que apontassem os culpados… Mas elas choravam e não se mexiam… Não queriam mais sangue…”
Sangue e água
Relata uma oficial de comunicações: “Estamos em marcha.. Umas duzentas mulheres, seguidas por uns duzentos homens. Está calor. É uma marcha de ataque: trinta quilômetros…. Marchamos deixando marcas vermelhas na areia… E essas coisas.. As nossas… Não dá para disfarçar nesta situação. Os soldados marcham atrás de nós e fingem não reparar em nada… Não olham para o chão… As calças secavam em nós , tornavam-se como de vidro, machucavam a pele. Faziam feridas, o cheiro de sangue era constante… Pois não nos distribuíam nada… Apareceu roupa interior de mulher talvez só dois anos mais tarde… Mal chegamos à passagem, os alemães começam a bombardear. Os homens correm para se esconder. Gritam nos chamando… Não ouvimos o bombardeio, não nos importa o bombardeiro, nós nos lançamos ao rio… Água! Aquela foi, provavelmente, a primeira vez que desejei ser homem…”
(*) Os trechos aqui transcritos foram adaptados por mim da edição portuguesa do livro, que foi a que li na época.