Falsos patriotas

Mais do que destruir os símbolos da nossa democracia, os golpistas desrespeitaram a memória dos candangos que construíram Brasília.

O Brasil inteiro ficou estarrecido e chocado com as imagens apresentadas neste domingo pelo Fantástico da TV Globo. O programa mostrou as invasões e depredações dos extremistas de extrema direita antidemocráticos nas sedes dos três poderes da República: Executivo, Legislativo e Judiciário.

Novas imagens de câmeras de segurança mostram ação de terroristas no Palácio do Planalto – Foto Reprodução Tevê Globo

Fiquei pensando sobre esse falso patriotismo dos vândalos terroristas que depredaram os símbolos da nossa democracia e do nosso patrimônio nacional e não pude deixar de lembrar dos candangos que construíram a capital federal, cuja maioria já faleceu. O que sentiriam ao ver os prédios que eles construíram sendo vandalizados por esses bárbaros?

Os candangos vieram para esse território no final da década de 1950 de vários lugares do país. Chegavam aqui após longas viagens em estradas ruins, de ônibus, caminhões e paus-de arara. Grande parte deles sem dinheiro, com a cara e a coragem e apenas um pouco de comida para a viagem. Desembarcavam na cidade – livre onde eram fichados nas construtoras e encaminhados para os acampamentos próximos as obras onde iriam trabalhar.

O primeiro Palácio construído em Brasília foi o Palácio da Alvorada, residência dos presidentes. A obra foi iniciada em 3 de Abril de 1957 pela construtora Rabello S/A , cujo acampamento ainda existe na Vila Planalto. Depois, em 1958 iniciaram as obras do Palácio do Planalto ( conhecido pelos operários como Palácio do Despacho) , a Praça dos 3 Poderes , a sede do Congresso Nacional e a sede do Supremo Tribunal Federal inaugurados em 21 de Abril de 1960.

Palácio do Planalto

Meu pai, Francisco Félix Rebouças, chegou à Brasília em um pau-de-arara em 1958, vindo do Ceará. Ele me relatou sobre o trabalho exaustivo na construção do Palácio do Planalto. Quando ele ficava muito cansado devido “as viradas” , ele dava um jeito de se esconder dentro de um monte de areia deixando apenas o rosto de fora coberto pelo chapéu, e ali tirava um cochilo. Assim como outros candangos, papai falava dos trabalhadores que caiam na construção do prédio de 28 andares do Congresso Nacional, obra que ele também trabalhou.

E falando do Congresso Nacional, não tem como esquecer algumas mensagens deixadas nas lajes pelos candangos :

“Que os homens de amanhã que aqui vierem tenham compaixão dos nossos filhos e que a lei se cumpra” José Silva Guerra 22/4/59

“Amor palavra sublime que domina qualquer ser humano”. Nelson

A Cidade Livre, a maior das cidades dos candangos – Foto Fundo Correio da Manhã, sob a guarda do Arquivo Nacional

Bem diferente dos candangos na década 1950, que vieram construir Brasília, essa cidade que se tornou Patrimônio da Humanidade – devido as suas singularidades: sua história de construção em apenas 1.112 dias, seu urbanismo e sua arquitetura modernista, que a tornam um museu a céu aberto e marco de uma época – os bolsonaristas terroristas vieram em 2022 e permaneceram acampados na capital do Brasil, mas, com o intuito de destruir! Destruir o que os candangos construíram! Para que a lei de cumpra? Não, para acabar com a nossa democracia rasgando a nossa constituição literalmente! Dominados não pelo amor, mas, pelo ódio e pela violência.

Os terroristas que se dizem patriotas, não tiveram nenhum respeito ao símbolos da nossa democracia, às obras de arte que compõem o patrimônio nacional, e desrespeitaram a memória dos milhares de candangos , que como o meu pai construíram a capital do Brasil com sangue, suor e lágrimas. Depredando o que custou o esforço do trabalho de vários anos de milhares de operários anônimos que erigiram os palácios sede da Presidência, do Parlamento e do Supremo Tribunal Federal. Se o meu pai fosse vivo ainda, teria chorado junto comigo ao ver as cenas tristes e deploráveis de pessoas que não tem qualquer civismo, ou sentimento de pertencimento e orgulho da capital do seu próprio país.

Leiliane Rebouças é internacionalista e escritora. Autora do livro ‘ Vizinhos do Poder: História e Memória da Vila Planalto”. Coordena o Movimento Guardiões de Brasília Patrimônio da Humanidade.

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