Delirar é preciso, viver é banal

Acho que Lula e Bolsonaro estão plantando as condições de uma guerra civil no Brasil no futuro. O lulismo e o bolsonarismo tenderão a permanecer, explicitando profundas polarizações sociais e minando o terreno institucional no imaginário político.

Lula - Foto Reprodução

Um amigo meu, desembargador em MT, me manda uma simples afirmação: “Lula, um Gigante”. O entusiasmo tem por referência uma notícia sobre a visita de nosso presidente à China. Concordo e acrescento algumas percepções não tão entusiasmadas como aquela do querido Magistrado.

Lula é de fato um gigante. Uma inteligência viva. Deixou Vargas no chinelo, quase um anão de jardim na história. Por várias razões.

Lula aliou azar e sorte, inteligência viva e esperteza, jeito analfabeto e capacidade de seduzir intelectuais, elogio ao socialismo e apetite insaciável pelo capital, apelo aos pobres e paixão pelo poder, por fim, retórica imodesta de honestidade e corrupção sistêmica. Qual o busílis que permite ligar pontos com relativo sucesso, de tantos Lulas? A ambiguidade.

A forma ambígua de colocar seu discurso um tanto impensadamente, oscilando entre repetições conscientes do que lhe é cochichado ao pé do ouvido e insights puramente passionais, expressam a personalidade dúbia de Lula. Uma personalidade madura, marcada por sofrimentos, ressentimentos e pressa de resgate pessoal, no imaginário dos grandes protagonistas da história do Brasil, como o top one.

Bolsonaristas em Brasília – Foto Orlando Brito

Em tempos de bolsonarianismo enraizado na sociedade dividida entre os que o idolatram e o odeiam, Lula vai curvando, não sem resistências, protestos e dívidas, homens de bom discernimento diante do gradual e lento esforço, quase compulsivo, de rememoração configurariva do personagem-presidente. A rememoração é ação política envolvendo propaganda (não somente paga, mas espontaneamente criada nos entrechoques de narrativas), sustentada em uma paralela e gigantesca tarefa de desmemória, ou esquecimento seletivo programado de maneira a dar sequência ao culto da personalidade.

Manifestação contra a corrupção. Foto Orlando Brito

A gradual desmemorização do que Lula protagonizou em sucessivos escândalos, desde o Mensalão (2005), em favor do líder carismático e suas façanhas é uma exigência política fundada numa exigência epistemológica, a de ruptura semântica. Com ela a centralização seletiva da história na qual a propinagem fez parte da ossatura do “estado”, os seus detalhes, tropeços da esquerda, perdem gradativamente sentido para a grandiosa tarefa – e feitos -do grande homem público.

Afinal, Lula não nos tirou de uma trilha autoritária? Há que se enterrar a parte podre do passado do grande líder e fixar na história a figura de estadista e as virtudes do maior presidente que o país já teve.

Daí que Lula e o lulismo podem fortalecer-se e fortalecer um novo populismo (misturando o delegativo ao popular), forjando um outro pragmatismo para a política, hoje, diante de uma redefinição global do mercado e dos seus capitalismos. Com a direção do banco dos BRICS nas mãos, alianças ao Sul, parcerias com alguns países da Europa, e um grande pacto com a China, o Brasil encara, enfim, seu destino. E Lula encarna essa missão, aos trancos e barrancos.

Celso Amorim

Na China foi o papagaio das velhas teses de Celso Amorin sobre hegemonia Norte/Sul, seguido da promessa de noivado com o bloco Russo. Na Europa, em suas viagens a Portugal e Espanha, reconheceu a soberania indiscutível da Ucrânia. No Brasil repete as ideias de André Lara Rezende condenando os juros altos fixados pelo Banco Central. Joga a população contra Roberto Campos Neto, desautorizando-o e simplificando uma complexa questão na qual não há um senhor da razão e dos interesses, mas muitos.

Lula já deu a entender que não pretende ser candidato em 2026, inclusive por razões de saúde. Poucos acreditam. A mentira é parte da genética do político. O poder é afrodisíaco, alguém já disse. Daí a guerra pela inelegibilidade de Bolsonaro. Não é de se afastar na cúpula petista e em cabecinhas confusas como a da senadora Gleisi Hoffmann e Rui Falcão, entre outros mais “à esquerda” no transformismo em curso, uma imitação adaptada das ditaduras russa e chinesa. A começar por mudanças no sistema político quase vitalício de Putin e Xi Jinping, flexibilizando normas eleitorais.

Redefinidas as Leis, sem os entraves da democracia liberal, populismos tendem a aproveitar a fadiga democrática para sufocar as alternativas de poder. Já se cogita de regular as redes (ver o bloqueio do Telegram) e só se fala em coibir a desinformação. Talvez um caminho sem volta para a liberdade e o indivíduo. Outras porteiras vão se abrindo para marcos regulatórios, algo no mínimo estranho…

Luiz Inácio Lula da Silva e Xi Jinping – Foto Ricardo Stuckert/PR

Lula parece já ter anunciado uma venda possível, a do apoio ao direito da China de reivindicar Taiwan, declarando-a como “parte inseparável daquele país”. A neutralidade anunciada no conflito entre Rússia e Ucrânia, melhor, entre China e EUA é aparentemente suspensa, apontando para interesses balançando em favor da potência ascendente, com maior lastro e poder de alavancar a reindustrialização e o comércio mundial. Mas tudo com afagos aos europeus, onde Lula registrou o direito da Ucrânia à integridade de seu território.

Arrisco delirantemente um pouco mais. A guerra na Ucrânia vai começar a entrar num banho maria… Lula já sinalizou aos russos que a Criméia é uma conquista não passível de devolução. Como se vê, temos uma política externa próxima ao que caracteriza um hímen complacente. Lula sinaliza para uma possível e vergonhosa anexação futura de Taipé e vai  legitimando e sacramentando a ocupação da Crimeia, no mesmo momento em que reconhece a Ucrânia em sua indiscutível soberania.

Volodymyr Zelensky – Foto Ukrainian Presidential Press

Zelenski tenderá a derreter com o prolongamento da guerra. Impossível manter o fantoche num circo em disputa por um novo padrão monetário. Lula já avisou que nas transações envolvendo os BRICS a moeda poderá ser outra e não mais o dólar. Quem sabe a sapiência ambígua de Lula arrisque dividir a Europa em proveito do Brasil, conquistando alguns de seus países, com um transitório padrão-euro?

Na ponta do lápis os EUA e seus vassalos, como a Rússia e sua avalista financeira, a China, vão pensando em alternativas para preservar seus interesses mais urgentes. Sejam quais forem as condições do armistício, a Ucrânia vai ter que aceitar.

Lula não vai esquecer os EUA, mas aproveitá-lo em termos de um comércio que não choque de frente com os hermanos do Norte europeu e desagrade a China. Internamente o jogo de xadrez lá no estrangeiro produz sequelas no quintal.

Bolsonaristas na Esplanada dos Ministérios – Fabio Rodrigues Pozzebom/ABR

Acertando ou não na política externa, internamente a esquerda, ao insistir em alimentar o bolsonarismo como paradigma do seu necessário bode da vez, vai colher os frutos dessa opção. Mormente se o general economia não mostrar resultados mais imediatos. Bolsonarismo fortalecido significa esvaziar ainda mais a direita liberal. Ela perde força para se reerguer na exata medida em que se hidrata a ultradireita iliberal.

Enclaves nacionais e malabarismos nas relações internacionais tenderão a ampliar suas contradições, reverberando em múltiplas desordens em nosso país.

Por fim, um delirius extremus. Acho que Lula e Bolsonaro estão plantando as condições de uma guerra civil no Brasil. Calma. Não será para amanhã. Lula e Bolsonaro talvez não estejam mais vivos, mas o lulismo e o bolsonarismo tenderão a permanecer, explicitando profundas polarizações sociais e minando o terreno institucional no imaginário político. O resultado retardado de uma guerra civil por procuração em suas consequências mediatas, mais uma vez, cujo prêmio poderá ser o fatiamento – simbólico e físico do nosso país, a longo prazo.

Amazônia – Foto Divulgação

Na hora certa, esfriando a guerra em curso, a Europa e os EUA se juntam para gerir a região Amazônica, pois cresce entre os gigantes do Norte, ocidentais e orientais, a compreensão e “sensibilidade” que a eles (os mais civilizados) pertence o Mundo e os brasileiros, abstraindo ideologias desbotadas, já provaram ser absolutamente coniventes com a destruição de ecossistemas. Norte-americano e europeus pensam assim, medianamente. As tribos que perderam mais guerras geopolíticas tem sempre uma razão subalterna, menor, aos olhos dos imperialistas.

Um outro delírio pode ser registrado como predição. O bloco chinês futuramente virá em socorro de seus aliados ampliados (sul-global é o conceito de marxistas espertos, e tacanhos), mas cobrará alto pela solidariedade, negociando fatias de nossas riquezas sem as quais as agendas de pax na ONU perdem suas bases concretas.

Ato contínuo, uma reconfiguração dos quintais que cabem cada vez mais no mundo, ao contrário do que pensa o grande economista Paulo Nogueira Batista Neto (“O Brasil não cabe no quintal de ninguém”) é provável, aproveitando a terra Brasilis. Uma nova geopolítica, ideológica em outras territoriais, nela, a simbólica. Delírio? Talvez. Escrevam aí. Coloquem uma cópia em garrafas e joguem no mar.

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