A última sucessão presidencial americana mostrou fatos que ninguém jamais imaginou pudessem acontecer nos Estados Unidos: negação da lisura das eleições, invasão do congresso para evitar a diplomação do eleito e a troca de afirmações contrárias ao sistema democrático constituíram uma surpresa a nós que pensávamos que a democracia americana era sólida.
A chave da construção dos founding fathers é de que o embate das forças, quando é grande o tamanho da amostra, gera o equilíbrio. Foi o que descreveu Tocqueville, no seu tratado clássico sobre a democracia nos Estados Unidos. Ele via os riscos que corria o sistema baseado na igualdade — o individualismo e o despotismo, a “tirania da maioria”, com a busca das vantagens pessoais — e explicava: “o amor do bem e do útil, a virtude, são movidos pelo ganho”.
Mas só numa observação distante o sistema parecia correr às mil maravilhas. Os inúmeros problemas surgidos desde os primeiros dias, que levaram rapidamente à transformação do modo de eleição do vice-presidente, à criação dos partidos, aos privilégios dos especuladores, ao genocídio dos indígenas, à monstruosidade da escravidão, à guerra civil, aos sucessivos assassinatos de presidentes etc. deveriam soar os alarmes de que nem tudo ia bem.
O cerne do sistema era o “check and balance”. Um controlava o excesso de poder do outro. Agora, no séc. 21, os republicanos lançaram mão do que os dois partidos já haviam praticado nos Estados: a obstrução do Executivo.
O problema estava nos pressupostos que pareciam claramente definidos por Tocqueville. Para acontecer o equilíbrio dos interesses particulares é preciso que eles se exprimam em interesses gerais. Mas eles se exprimem, na realidade, pela ideia de interesses individuais. O perigo não está só nos interesses corporativos, mas na manipulação das ideias por esses.
A esta altura a degradação de democracias não era, é claro, novidade. A República de Weimar fora facilmente destruída por Hitler, que, não conseguindo fazê-lo de fora, a roeu por dentro.
Na penúltima eleição presidencial americana se viu a larga construção de uma série de mentiras primárias em que a outrora maioria silenciosa queria acreditar; a conveniência das máquinas eleitorais estaduais; a cumplicidade do “mercado”.
Com a eleição do Trump, o mundo assistiu à decomposição de todos os princípios políticos. Os Estados Unidos deixaram de ser um exemplo para o mundo. Romperam o Acordo de Paris, fundamental para a sobrevivência da humanidade, não renovaram o controle de armas nucleares etc. Trump se preparou para seguir o caminho dos autocratas do mundo inteiro, que começa pela prolongação do mandato. Tomou a vacina de dizer que, se perdesse, as eleições estariam fraudadas.
Mas parecia que Trump seria a liderança absoluta do Partido Republicano pelas próximas décadas. Nas eleições intermediárias que renovam a Câmara dos Deputados e parte do Senado, resolveu mostrar a força e escolheu candidatos a seu molde. Investiu pesado neles. E levou uma surra. Os republicanos conseguiram ainda o controle da Câmara, mas seu resultado foi o pior para este tipo de eleição.
Finalmente apareceu o que se julgava impossível, mas que na realidade era a síntese do que Trump queria: ele prega agora a extinção da Constituição Americana, esta que é um exemplo para o mundo inteiro que segue e acredita no autogoverno. Ela é venerada pelo povo americano, que tem sob sua proteção os seus direitos e serve de apanágio dos direitos humanos para o mundo inteiro.
Precisamos pensar em novos instrumentos com que a democracia possa defender-se desses iconoclastas que buscam regimes da força numa regressão que seria o fim da liberdade.
– José Sarney é ex-presidente da República, ex-senador, ex-governador do Maranhão, ex-deputado, escritor da Academia Brasileia de Letras