Alexandre de Moraes: um garantista ornitorrinco

O Judiciário não tem que se envolver em política. Precisa garantir o equilíbrio institucional. Quando toma partido e assume um dos lados gera instabilidade, mesmo se retoricamente este lado seja o da defesa da Constituição.

Presidente do TSE, Alexandre de Moraes - Foto Flickr/@tsejusbr

“O ornitorrinco  é um ensaio do sociólogo Francisco de Oliveira, que recorreu ao estranho animal dotado de bico de pato – considerado ao mesmo tempo réptil, pássaro e mamífero – como metáfora do Brasil enquanto nação presa a um impasse evolutivo”, como definido no Jornal da Unicamp.

Perplexo diante da avalanche de notícias sobre prisões a mando do Ministro Alexandre de Moraes, recebo vários pequenos comentários de juristas, desfavoráveis, como regra, e alguns favoráveis. Aproveito-os para socializá-los assistematicamente.

O exercício de reflexão crítica torna-se muito mais complexo e difícil em momentos quentes da política. Na verdade, desde a disputa eleitoral de 2022 o caldeirão das guerrilhas entre grupos e facções vem fervendo. Narrativas e desinformações, fakes e muitos outros ruídos na política entrecruzam-se misturando interesses gerais e particulares, ideológicos e corporativos. O resultado é um caldo confuso ao meio da ebulição de ingredientes tóxicos a nos complicar ainda mais o caos institucional.

Tenente-coronel Mauro Cid – Foto Reprodução/Twitter

Os eventos implicando as enérgicas medidas do Ministro Alexandre Moraes (a exemplo do caso de fraude nas vacinas; prisão do ajudante de ordens de Bolsonaro, Cel. Mauro Cid; intervenção no Google; busca e apreensão na casa da família do ex-presidente, etc ) causam preocupações. Os contextos dos fatos ganham relevo para situar a radicalidade das decisões e a legalidade das mesmas.

Tenho dificuldade, sinceramente, para entender as razões invocadas quanto à garantia da ordem pública para a prisão preventiva. Desde a prisão de Anderson Torres, ex-Ministro da Justiça e da Segurança, há mais de três meses e de outras derivadas do 8 de janeiro até a do coronel mandrake.

Ministro da Justiça, Flavio Dino – Foto Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

Muitos tribunais de Justiça certamente não decretariam tais prisões, mas o STF é a Corte empoderada para tal. Flávio Dino, o eloquente super ministro de Lula, a propósito dos problemas com as high tech na cultura e da necessidade de regulação midiática, afirma que não há território sem Lei, colocando um basta ao faroeste virtual. A CF/88 exige uma definição jurídica do âmbito concreto do garantismo jurídico, fixando-se o que nele é garantia individual e da ordem social, e o que em nome da liberdade afirma o seu contrário.

Ser garantista pressupõe submissão aos direitos fundamentais. Sem respeito à dignidade humana e a presunção de inocência não há estado democrático de direito. Portanto, se quaisquer das garantias individuais é relativizada o risco do autoritarismo é grande, mesmo se justificado em ação corretiva contra ações antidemocráticas deste ou daquele setor político. Os fins não justificam os meios pois aqueles não podem extrapolar, legitimados em retóricas emancipatórias a baliza legal do que resguarda o indivíduo diante do poder do Estado.

O PT, como potência ressentida de moralidade pública e Bolsonaro, com sua indisfarçável sedução por trilhas protofascistas, ampliaram um quadro de ódio que divide a sociedade brasileira. Deslocar para o outro as causas do problema é uma atitude dissimuladora dos jogos de poder. Não há adversários na política, mas inimigos, na lógica da destruição no campo da política. Um terreno propício para o oportunismo.

Sérgio Moro – Foto Orlando Brito

Alexandre de Moraes parece picado pela mesma mosca que encantou Sérgio Moro em seu alpinismo abjeto. Como todo oportunista Alexandre parece montar um cavalo encilhado, construindo um futuro politico: ser presidente. Para tal parece incidir em atropelamentos, sem cerimônia, rasgando ou desfolhando a Constituição, para muitos juristas da área.

Por mais que se abomine Bolsonaro não desejo para ele o que não aceito para mim ou para qualquer indivíduo enquanto cidadão.

Ministro Gilmar Mendes – Foto Orlando Brito

No STF que aí está somente Gilmar Mendes escapa da tentação voluntarista da flexibilização garantista. O preparo intelectual de Gilmar é reconhecido mundialmente e tem marcado a diferença entre o jurista e os aloprados de toga suprema . Mas não sei se politicamente Gilmar Mendes não vai ser engolfado por essa tragédia já desenhada, por omissão e desgaste institucional, a deslegitimação do Poder Judiciário.

Difícil entender como o STF consegue sustentar a competência para julgar esses casos, como ocorre na querela sobre a vacinação de Bolsonaro e a possível fraude, envolvendo-o. A competência seria da Justiça de 1° grau, questionam professores de processo. Não precisa prender os suspeitos, protestam advogados.

O rosto estampado de Bolsonaro numa bandeira verde e amarela encara a Justiça

Afinal, há vários mecanismos para monitorar e cumprir as determinações judiciais. Vai pairando no ar uma suspeita: existe algo de pessoal na conduta de Moraes contra Bolsonaro. Uma vingança cada vez menos sutil perpassa sua caneta?

Difícil avaliar sem conhecer o conteúdo dos processos. É verdade. Todavia, sustentam juristas mais engajados na luta social, a questão de fundo é o combate ao golpismo da extrema direita (que o Bolsonaro imagina liderar). Delírios não faltam. Bolsonaro seria apenas um fantoche, uma “reencarnação” de Tiradentes, figura secundária da conjuração mineira. O Alferes Capetão, após seu retorno ao Brasil, tem feito algumas bravatas previamente acertadas com seus asseclas de levante futuro. Continua sendo um mamolengo do Poder Evangélico, da Milícia e de alguns poucos oficiais militares que deliram com saudade de um “ancien regime” que sequer viveram.

Não falta o cômico. No processos envolvendo o ex-presidente devem existir fortes indícios de “golpismo” e usos de Michelle, a vedete mais cara do mundo deixou Vera Fischer no chinelo. E tudo se complica entre fofocas e absurdos surpreendentes.

Primeira-dama, Michelle Bolsonaro – Foto Orlando Brito

Questão da morfina. Se a defesa do ex-presidente pedir exame toxicológico, pode se confirmar que o herói da história na verdade é como santo de barro. Maldosos sugerem a dependência de heroína (s). Outros fazem piada a propósito de um possível exame nas pedras confiscadas, constatando que os brilhantes são falsos tanto quanto a candidatura fantoche de Michelle. O festival de besteiras é parte do anedotário da desinstitucionalização. Voltando ao STF.

Moral da história: O Brasil, um país alucinantemente alucinado, não é para amadores. Todo o STF extrapola faz tempo.

Não respeita a legalidade e o sistema acusatório. Perseguição não é Justiça! As regras garantem o equilíbrio do jogo! Alexandre Moraes com suas decisões desnecessárias gera mais instabilidade que aquela pressuposta na desordem pública que o preocupa. Há presente, sem dúvidas, um objetivo de tornar Bolsonaro inelegível. Mas essa é uma boa política ou uma temerária ação social com consequências perversas? Bolsonaro começava a derreter e comportamentos de retaliação acabam promovendo-o, na medida em que gera solidariedade até entre bolsonaristas menos radicais.

Homem atropela autor de furto e debocha: “Menos um fazendo L” – Foto Reprodução/Instagram

O Judiciário não tem que se envolver em política. Precisa garantir o equilíbrio institucional. Quando toma partido e assume um dos lados gera instabilidade, mesmo se retoricamente este lado seja o da defesa da CF/88. Mas não é tão óbvio. O descrédito da Judiciário é muito mais corrosivo ao tecido social do que o descrédito dos demais poderes, pois gera revolta social! Veja o motorista de aplicativo que atropelou e matou o assaltante, tirou foto e postou ” faz o “L”! Começa assim! Com a banalização da barbárie. Mas há argumentos em favor da radicalidade de Alexandre de Moraes diante de um quadro político de instabilidade governamental.

Nunca esquecer que a eleição foi 49% a 51% e a popularidade do atual presidente está derretendo junto a opinião pública. É um momento delicado e este tipo de decisão incendeia ainda mais o cenário. Daí as decisões autocráticas, de questionável previsão legal. Alexandre lembra um carro desgovernado ladeira abaixo, para muitos.

Os debates entre Cardozo e Coppolla na CNN – Foto Reprodução

Esses inquéritos no STF precisam de freio de arrumação, urgentemente. Os debates entre Cardozo e Coppolla na CNN são patéticos em maniqueísmos “ideológicos”. Até então, para além do Regimento do STF prever muitos desses inquéritos em curso, a situação era muito grave porque a PGR nada fazia. Não há como ficar indefinidamente com o Min Alexandre de Moraes. Há que exigir mais argumentos, fundamentações e, sobretudo, equilíbrio.

Lula fez discurso emocionado para milhares de apoiadores na Avenida Paulista – Foto Ricardo Stuckert

Lula venceu uma eleição de forma maiúscula, sugerem muitos lulopetistas. Será que a diferença de 2 pontos percentuais é pouca? Tem que ver o contexto dessa eleição.
Quando Presidente, Bolsonaro usou toda a máquina pública para tentar se reeleger. Todo o agro, todo o empresariado e as redes sociais estavam nas na mãos. A PRF parou mais de 4000 ônibus de eleitores no nordeste. Toda a ordem de fakes contra a oposição foi desenvolvida de forma gigantesca. Foi pouco?

O Inquérito no STF parece uma excrescência. Mas pensem num quadro de ruptura institucional. Nós temos cerca de 2000 procuradores da república, cerca de 15000 promotores de justiça. Qual foi o inquérito instaurado para apurar as fakes, o assédio eleitoral, o uso da máquina pública, etc etc?

Então temos o impasse resultante de uma imensa classe jurídica e política um tanto anestesiada e um juiz supremo tão alternativo que faz corar os mais brilhantes garantistas, muitos deles ainda silenciosos, talvez pensando como sair dessa sinuca de bico sem serem tachados como bolsonaristas.

Chico de Oliveira faz muita falta para pensarmos um país desarticulado, dividido, no qual o arcaico se moderniza e o progresso carrega a indumentária do atraso. Indefinido, o país aponta para um estranho desenvolvimento institucional ainda elitista, conservador, patrimonial, pleno de nichos estamentais em briga por seu quinhão de privilégios. É o caso dos sistemas político e judicial, militar, e do mercado, atravessados por eventos nos quais os interesses corporativos sobrepõem-se aos públicos e republicanos. Daí a emergência de salvadores da Pátria, xerifes heroicos, pastores messiânicos, fascistas e comunistas desbotados, pela direção de milhões de seres humanos manietados pelos populismos de ocasião.

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