A poesia salva

A poesia é um dos modos que inventamos para reafirmar a nossa humanidade; um modo de provar que nossa capacidade de criar é superior àquela de destruir

Foto Agência Brasília/Divulgação

Não acredito em coincidências. Algumas pessoas cruzam as nossas vidas por força do universo que insiste em juntar pontas que estavam soltas por aí.

Fui almoçar com umas amigas num restaurante da asa norte quando passou por lá, vendendo uns livros, o Rubens. Nós já o conhecíamos, ele vende a revista Traços por bares e restaurantes de Brasília.

Pra quem não conhece, a Traços é um projeto de reinserção social para pessoas em situação de rua, chamadas de porta-vozes da cultura. Elas são treinadas para a comercialização da revista, cujo valor quase integral é destinado ao vendedor. Em quase seis anos de existência, a Traços já teve mais de 350 porta-vozes, dos quais 170 foram inseridos no mercado formal ou informal de trabalho, saindo da situação de rua.

Além do trabalho social, a Traços é um canal de divulgação artística e cultural da cidade. Com um belo projeto gráfico e uma ótima linha editorial, traz entrevistas e matérias de grande qualidade. Ao comprar a revista, além de ajudar os porta-vozes, a pessoa adquire informações relevantes sobre arte e cultura do DF..

Revista Traços – Foto Reprodução

Rubens não estava vendendo a revista nesse dia porque tinha operado um dos olhos e ia retornar ao projeto quando estivesse mais recuperado. Como a fome e os compromissos não tiram licença, ele deu um jeito de se virar mesmo com a vista ainda bem avermelhada. Ofereceu os livros por 25,00 cada, disse que ficaria com 10,00 pra ele.

Como só tinha 10,00 na bolsa, dei a ele o dinheiro dizendo que não precisava me dar o livro. Minha amiga fez o mesmo. Comentei que da próxima vez compraria um dos livros, demonstrando interesse por um em especial. Rubens pegou o exemplar e me entregou. Disse: toma, você não gostou desse? Pode ficar. Argumentei que não tinha dado dinheiro suficiente, mas ele retrucou dizendo que nós duas tínhamos dado 20,00 e aquele valor estava bom. Ainda tentamos, eu e minha amiga, convencê-lo a ficar com o livro, mas ele insistiu para que eu ficasse com a publicação.

Essa história me provou, mais uma vez, que as pessoas pobres e vulneráveis não querem simplesmente esmola, sempre que possível elas preferem trabalhar. E querem ser tratadas como gente, com respeito, reconhecimento e dignidade.

Sempre educado, Rubens seguiu satisfeito, apesar de seu olho ainda um tanto inflamado. Tomara que tenha conseguido vender outros livros. E tomara que, ao retornar ao projeto da revista, encontre pessoas receptivas pelo caminho.

Quando encontrar um porta-voz da Traços por aí, ouça o que ele ou ela tem a dizer. Se der, compre um exemplar, ou mais de um. Se não der, doe ao menos um pouco do seu tempo. Às vezes, mais do que o dinheiro, afeto e atenção é do que eles mais precisam.

O livro que comprei “barato” do Rubens é “Beberei a vida às borras”, de Anderson Piva. Não conhecia o autor, mas já me encantei por ele. Dentre as páginas com belos poemas, havia uma carta com frases dizendo assim:

“Alguém disse, certa vez, que fazer poesia depois de Auschwitz era um ato bárbaro.” E segue mais à frente: “A poesia é um dos modos que inventamos para reafirmar a nossa humanidade; um modo de provar que nossa capacidade de criar é superior àquela de destruir”.

Precisava ler isso nesses dias que antecedem o 2º turno das eleições. Obrigada, universo, por colocar o Rubens e a poesia do Anderson na minha vida.

Hasta la victoria, amigos!

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