A Hegemonia que não é, e não o é mental nem fascista?

Não há hegemonia da extrema direita no Brasil. Ela, de fato, tornou-se orgânica, muito além de Bolsonaro. Lula vai tentar controlar esse processo regressivo. Se vai conseguir, não se sabe

Lula – Foto Ricardo Stuckert/Divulgação PT

Claudio Szinkier com seu artigo ” A Hegemonia mental é fascista” (F. de SP, Opinião, 01.11.22), construído a partir de uma resenha do livro “Ninguém disse que seria fácil”, do historiador Valério Arcary,  nos instiga a refletir, um dia após a realização do segundo turno das eleições, com a vitória de Lula, sobre o que ele denomina de “programa  econômico e cultural fascista”, o qual pressupostamente se realiza, silenciosamente, com a “adesão orgânica de grande parte da sociedade”.

Adesão do explorado de ontem, hoje (re) alienado, agora sob a fantasia do empreendedorismo. Programa (?) sustentado numa conjunção de “distopia complexa” e  “violência entorpecente”. Nas palavras do autor, fantasia reconstruída nos “circuitos linguísticos que se enveredam no ambiente público”.

Michael Onfray

Ok. Claudio Szinkier,  artista plástico e seu olhar  da estética do político de Arcary, se descortina o camaleão autoritário, tomado como sinônimo de totalitário (ele ronda o mundo e depois da Hungria, Polônia, chegou na Itália) deixa muitas questões em aberto. Não entrarei na generalidade da “distopia complexa”, que pouco ou nada diz numa sociedades de massas, essa mesma objeto da violência resinificada no movimento do Capital. Em relação ao fascismo original há mesmo uma evidente mutação como forma contrária à democracia liberal, “da exaltação terminal da  individualidade” e da desintermediação total via Duce, para a situação de “choque de capitalismo”, via controle em nível algorítmico de robôs, que adoece indivíduos e os entorpece, impedindo-os de sequer entender suas gêneses e o sofrimento estrutural. O choque ou “estabilizador” de voltagem ultraliberal parece mesmo mergulhar no comum redefinindo a cultura dominante de acordo ao canibalismo imposto pela financeirização dos mercados. Se causa mais sofrimento ou não, penso ser plausível a hipótese, embora o mal-estar mereça pesquisas de campo para enriquecer o que Freud detectou a partir de intuições para além do singular experimento da análise individual. Michael Onfray fez tremer os cardeais lacaneanos na crítica às bases empíricas da teoria freudiana. Poupo os leitores da passagens absolutamente gratuitas sobre o adoecimento e a medicina, embasadas nas críticas de Dunker, Safatle e Silva Jr, que acusam a psiquiatria de melhorar o produto humano, ou a mercadoria para o consumo, típicas das conhecidas broncas entre psicanalistas e médicos da área mental. Elas são absolutamente inverificáveis e valeriam para todos os que cuidam da alma, nos consultórios, divãs, igrejas ou lugares de culto (incluídos os acadêmicos). De todo modo, frequentar psiquiatras, analistas e terapeutas são práticas tão seletivas e raras que precisarão de mais décadas e milhares de marqueteiros midiáticos para “nivelamentos” e “vulgarização” ao ponto de chegar e acontecer, com importância estatística, qualificando a força de trabalho do trabalhador em geral.  Se ultrapassarmos a parcela privilegiada da pequena burguesia moderna, trabalhadores indiretos (autônomos)  que já viram um divã fora de lojas de móveis, e considerarmos os trabalhadores diretos, aqueles que de fato produzem mais valia, o abismo entre psiquiatria e psicanalistas e classes trabalhadoras mais abaixo na pirâmide social torna-se evidente.

Poupo também os que estão lendo este textículo de outras confusões, estas de responsabilidade absoluta de Szinkier, na qualidade de crítico de arte, sobre o sertanejo fascista, neolatifundiário, etc. Impossível compreender tantos incisivos registros da cultura popular reduzidos como um lixo inspirado na “fabulação do Texas” e na orquestração de um Capital tão genérico quanto as suas falsificações no mercado, inclusive da parte da crítica.
Devaneios indicativos de catatonia agravada. Um longo e estapafúrdio parágrafo, para dizer pouco. Registro algumas observações sobre como vejo o quadro social de hoje.

Parto da ideia de que jamais vimos tantas desordens como agora, envolvendo múltiplas dimensões da vida. Desordens que se misturam, se acoplam, sobrepõem-se, concorrem, conectam e desconectam entre si, sem atender a nenhum critério causal, seja o Capital, seja o Inconsciente, mesmo o acaso  na medida de sua possibilidade de mensuração dentro de outros parâmetros lógicos (da paraconsistência).

A Metamorfose do Mundo, 2016

Nessa ideia da incapacidade do pensamento atual entender a natureza das transformações do mundo, já presente em Ulrich Beck (A Metamorfose do Mundo, 2016) e também em Edgar Morin (Rumo ao Abismo? 2006) , parte-se do fato que o caos social abarca o caos da razão. Ou da inteligência em desordem diante de um mundo no qual ela também ajudou a produzir. Eis o ponto. E um problema a mais: como mudar algo se o campo intelectual encontra-se também entorpecido, diante da drogadicção do tempo regressivo? Isso, a cocaína, as drogas em geral, o álcool e o cigarro, não são nada fora daquilo que T. Adorno via como dependência da droga maior, a própria sociedade. Hoje mais do que nunca as doses e overdoses se dão por falta de uma sociabilidade mínima que essa sociedade nega, sonega, ao mesmo tempo que estimula e induz : o seu consumo. Mas há as demandas por direitos é constante, direitos sociais (trabalho, saúde, educação, segurança, entre outros).

Alguns trabalhadores, na falta de um emprego, tentarão ser “empresários de si mesmos”. Mesmo na área da tecnologia da informação os funis e filtros para as reformulações nas formas de ocupação não apontam para um mar de rosas fora de certos guetos digitais. A desindustrialiazação não significa uma revolução digital capaz de produzir pleno emprego. A realidade de milhões de jovens continuará sendo a busca de um emprego, mesmo no home office, sob a dominância da precarização do trabalho. Muitas são as interfaces das mutações em curso no trabalho e fora dele, ao ponto dos conceitos de crise e de racionalização terem perdido os seus sentidos do século XX.

Outro pressuposto deste escrito é que consequências das desordens causam nas mesmas dimensões. Mais, certas colateralidades nascidas no nocivo podem geram efeitos benéficos.

De fato o tempo é de regressão precisa. Não se fixa na infantilização mas remete ao mais bélico estado primitivo.  A loucura da polarização Lula/Bolsonaro é uma ponta do iceberg enganoso desse desequilíbrio psíquico nos planos cognitivo-afetivo. Mas há alguns seres humanos ainda capazes de reconhecer como estamos ou somos ridículos numa política similar a um jogo Fla/Flu no qual acusa-se o outro de portador de ódio,  com algum ódio, não percebido ou reconhecido. Muitas as armadilhas nos salva-vidas que no dilúvio buscamos, desesperadamente, vestir, ligando o foda-se para os outros,  afinal, são os inimigos bem conhecidos: os fascistas concretos. E para fascistas, os comunistas invisíveis.

Então, todo esforço de racionalização é limitado e domesticador, neste momento. Em nome das Luzes muitas teologias foram erguidas e sistemas totalitários criados. Toda aproximação é provisória, e armadilhosa. A considerar, sempre, a busca de poder mais do que a potência libertário-emancipatória, .

Jair Bolsonaro – Foto Orlando Brito

Bolsonaro fascista? Não sei se procede, ainda. Ultraconservador e de extrema direita, sim. Talvez, migrando para posições de direita conservadora e ampliando o campo esgarçado da Direita nacional. Direito dele. Ainda mais se resguardado em boa retaguarda eleitoral. Perdeu, aceitou. Fará o jogo no Congresso.

Hegemonia mental? Não sei. Talvez mais um movimento conjuntural que estrutural, portanto, reversível pois volátil. Lula acaba de ganhar. Hegemonia é algo mais que a métrica utilitarista. Ou não?

O Bolsonarismo não resultou do anti-lulopetismo, afirma Szinkier . Sim e não. Resultou, sim, e de outros vetores antigos no pêndulo histórico da alternância entre elites e massas por democratização ou entre elites e massas contra a democratização. (Leonardo Avritzer. O pêndulo da Democracia, 2019).

O impeachment de Dilma. Foto Orlando Brito

A gênese histórica abriga períodos de curta, média e longa duração. Fiquemos no imediato.
É fato, desde 2013, duas temporalidades se desencontraram, minando a linguagem intermediativa do político. Concorreram para o impeachment de Dilma um conjunto de eventos nas mentes dos brasileiros: corrupção (real) nas hostes dos baluartes da boa moral; política econômica desastrada (traindo o que foi prometido por Dilma em 2014), inépcia na articulação política; desestruturação da ordem mundial desde 2008. Esse o imaginário que desintermediado atinge ao simbólico. Lula tentará o impossível: tirar o bonde da história que ele mesmo ajudou a colocar nos trilhos da barbárie liberal e recolocá-lo na melhor relação entre elites (as de sempre com alguma abertura para novidades ecológicas de interesse planetário, leia-se, países do Norte) e massas, todas elas, carentes de direitos pois jogadas na conta do déficit de modernidade. Evangélicos vão adorar, sob Lula,  os novos costumes do trabalho mais qualificado, do prestígio social reconhecido, do esclarecimento que advém do acesso ao conhecimento, permitindo dialogar com as tradições.

Quiçá o terceiro governo de Lula permita uma superação em termos humanistas e civilizatórios. Um recuo ao início da queda do lulopetismo torna-se vital para o futuro das lutas, redefinindo elites e massas.

Grupo a favor do impeachment da presidente Dilma faz manifestação em frente ao Congresso. Foto Orlando Brito

A força que tirou Dilma do poder teve suas origens naquelas passeatas de junho de 2013. Numa coletânea organizada por Willis Santiago Guerra naquele 2013 ( Alternativas poético-políticas ao Direito a propósito das manifestações populares em junho de 2013 no Brasil) na qual participaram S. Zizek, M. Chauí, entre muitos outros, escrevi cinco textos nos quais sustentava um sinal de força naquele movimento, que não podia ser reduzido a uma ação da direita, tout court. A energia que ecoou Brasil afora foi inimaginável e o governo não entendeu nada e, não sabendo como reagir, optou pela desclassificação e desconsideração. Partidos também  não entenderam que tinham diante de si um potencial para fazer a politica se repotencializar. Em 2015 as passeatas já tinham perdido o poder da revolta para se tornar piquenique, pois, não sendo ouvidos, milhões optaram por protestar sem acreditar muito nos protestos, afinal, e se a Presidente não os ouvia, não os entendia… Eugênio Bucci (A Forma Bruta dos Protestos, 2016) nos diz:”(…) ela não entendeu porque, hoje se sabe, a trama de compromissos que a amarrava a um modo arcaico de produção de lucro, com base na promiscuidade entre o público e o privado, não lhe dava o espaço para processar a política a partir de paradigmas menos antiquados. Ela  simplesmente não tinha margem para sequer considerar a possibilidade de mudar de conduta”(p.17).

Carla Zambelli e Roberto Jefferson

A eleição de Lula mostra, no máximo, o que Gramsci chamava de empate hegemônico. O pêndulo pendeu para o lado das elites, as de sempre, misturando tamanduás e aves de rapina, com apoio das massas que ainda apostam na democratização, de um lado, e elites de sempre mais extremados na direita e massas dispostas a pagar o preço da aposta em posturas autoritárias em detrimento da liberdade com satisfação de um cardápio curioso de promessas modernas, (emprego mesmo, o empreendedorismo ainda é ficção) e sobretudo, pré-modernas (em razão dos estilhaçamentos, fraturas e dores que exigem cada vez mais doses dessa droga chamada sociedade. Sim,  na exata medida em que ela, a sociedade, por ser anti-sociedade, amplia a abstinência e os surtos. Somente uma parcela da direita extremada, poderia ser colocada como fascista. O bolsonarismo possui 1/3 de militantes dispostos a seguir Roberto Jefferson e Carla Zambelli, empunhando insanamente armas, apoiando caminhoneiros enganados pela falácia da fraude eleitoral ou apostando numa ação direta. 2/3 dos bolsonaristas são, sim, antilulistas. Chamá-los de fascistas é, além de um erro sociológico grosseiro, pois inverificável no mundo real, um erro político num momento no qual Lula está consciente de que uma de suas missões como líder populista é a de exercer todo o seu carisma para atrair, cooptar, absorver setores bolsonaristas, puxando-os de um lado do pêndulo para o outro.

Bolsonaristas – Fabio Rodrigues Pozzebom/ABR

Concluindo, não há hegemonia, ao menos ainda, da extrema direita. Ela, pela primeira vez, de fato, tornou-se  orgânica, algo muito além de bolsonaro. Mas o bolsonarismo não é  fascista, embora abrigue amplas tendências fascistas, mesmo nazistas. Lula conteve essa erupção autoritária e vai tentar desconstruí-la. As mentes de parcelas da sociedade brasileira em todos os setores da estrutura piramidal  tenderam para a direita mais extremada, na conjuntura do medo, da insegurança, da falta de esperança. Lula vai tentar controlar esse processo regressivo. Se vai conseguir, não se sabe. No xadrez estão dadas todas as possibilidades, de uma classe trabalhadora (da base e do meio) produzir suas elites capazes de somar forças para um novo pacto social. Tarefa muito difícil, quase impossível. Necessário tentar o impossível para lograr o possível, como dizia M. Weber.

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