Pedalada monetária. Como emitir moeda sem provocar inflação

Em sentido oposto do que vinha fazendo antes da pandemia, o Governo Federal está injetando bilhões de reais na economia. Quais as consequências de emissão de moeda desta magnitude? Qual o papel do BC? E do Tesouro Nacional? Há risco de pedalada monetária? O colunista explica estas nuanças econômicas

A emissão de moeda para cobrir despesas do governo federal no enfrentamento do coronavírus defendida pelo ex-presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, e o ex-ministro da Fazenda, Luiz Carlos Bresser-Pereira, é uma espécie de “pedalada monetária”, que no final pode ter impactos inflacionários e sobre capacidade do Tesouro Nacional honrar suas dívidas.

É que, com a liberação de recursos federais para socorrer milhões de brasileiros e as empresas, além de dar liquidez ao sistema financeiro, deixou o Brasil de joelhos. O País só não quebra pela capacidade soberana de fazer dívida junto ao setor privado para ser honrada no futuro quando as coisas na economia podem estar melhores.

Dívida pública em alta

Como a arrecadação dos impostos de 2020 é inferior ao conjunto das despesas, o Tesouro Nacional foi obrigado a emitir títulos públicos para cobrir todas as despesas do impacto da covid-19 na economia.

A dívida pública federal vai saltar de 76% do Produto Interno Bruto (PIB), em janeiro deste ano, para 84,7% do PIB, e, em 10 anos, atingirá a 100% do produto. Com o aumento monumental da dívida, o Brasil só não quebra de vez, como uma empresa privada, pela fé pública e confiança de que um dia vai honrar estes compromissos financeiros.

O economista e ex-ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira

Ao defender a emissão de moeda pelo Banco Central na economia, tanto Meirelles como Bresser-Pereira esperam resolver um problema de liquidez nos meios de pagamento, sem que seja necessário a venda títulos do Tesouro no mercado. Neste caso, haveria dois objetivos: (1) evitaria que os escassos recursos do mercado financiassem as operações de socorro à economia afetada pelo isolamento social e (2) o montante dos valores ficariam fora do total da dívida publica federal, que hoje é de 76% do Produto Interno Bruto.

Para que serve o BC?

São, entre outras, as seguintes as atribuições do Banco Central: emissor de papel moeda, controlador de liquidez na economia, banqueiro dos bancos, depositário das reservas internacionais. O BC opera com os títulos emitidos pelo Tesouro, com taxas de juros e com depósitos compulsórios dos bancos para aumentar ou reduzir a base monetária composta por papel moeda e reserva bancária.

No balanço do Banco Central constam os ativos , como títulos públicos e privados, ativos de bancos que recorreram ao redesconto e às reservas internacionais. No lado do passivo, o papel moeda em poder do público, depósito à vista, meios de pagamentos entre outros. Os ganhos apurados no balanço do BC com as suas operações de compra e venda de títulos públicos, reservas internacionais e nas operações de redesconto aos bancos são transferidos ao Tesouro Nacional.

Edifício-sede do Banco Central no Setor Bancário Norte, em lote doado pela Prefeitura de Brasília, em outubro de 1967

A “pedalada monetária” em discussão hoje ocorreria com a criação de moeda pelo endividamento do Tesouro Nacional com o Banco Central. O Tesouro emitiria títulos que teriam que fazer parte apenas na coluna dos ativos do Banco Central, que permitiria a instituição fazer a emissão de moeda deste mesmo sistema financeiro. Como o BC manteria o títulos do Tesouro, haveria uma expansão da base monetária com esta injeção líquida de recursos.

No curto prazo haveria uma criação de riqueza e ganho do BC com senhoriagem (ganho do BC com as operações feitas com a moeda no mercado), mas, no longo prazo, haveria impactos inflacionários pelo aumento dos preços. É verdade que, com a perda de renda e o emprego, o consumo deve cair fortemente.

A crise como anteparo da inflação

Bresser-Pereira é de opinião de que não haveria impacto inflacionário e que, como a operação seria feita entre BC e Tesouro, ao final e ao cabo, tudo se resolveria com um encontro de contas, especialmente diante da magnitude da crise econômica brasileira e mundial.

O argumento é defensável. Só que o mercado, ao perceber a utilização deste instrumento pouco ortodoxo, vai reduzir a confiança na capacidade do Tesouro de honrar suas dívidas e cobrará seu custo.

No governo do ex-presidente da República, José Sarney, o Banco do Brasil fazia emissão de moeda pela “conta movimento” para atender as demandas de financiamento agrícola, entre outras despesas na rubrica de operações de crédito do Tesouro Nacional – prática criada nos governos militares. Não havia limite de gasto para a conta movimento do BB. Só no final do ano é que o Tesouro tinha ideia do montante de gastos, que funcionava como emissão de moeda.

O Plano Real e a LRF

Até a edição do Plano Real, a maioria dos Estados tinha bancos estaduais. As instituições eram utilizadas para financiar dívida dos seus respectivos governos, o que, na prática, funcionava como emissão de papel moeda, atrapalhando a condução da política monetária do BC. A privatização dos bancos estaduais e definição de regras para financiamento dos estados fez parte do grande ajuste fiscal comandando pelo economista Edmar Bacha.

O Brasil pagou um elevado custo para acabar com a inflação durante décadas e só teve êxito com o apoio de medidas fiscais de controle de gastos, o que levou a criação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso.

A crise fiscal e de liquidez da economia do Brasil criada a partir do processo de isolamento social é muito pior do que todas as vividas dos anos 1960 para cá.

E se todos corressem aos bancos?

Nas primeiros semanas da crise do coronavírus, caso houvesse um corrida das pessoas para sacar dinheiro de suas contas nos bancos para trocar títulos públicos ou privados por moeda, o sistema financeiro entraria em colapso. Os bancos não teriam papel moeda para entregar aos seus credores, o que levaria a uma quebradeira em empresas e colocaria na miséria milhares de pessoas. Com esta preocupação, o presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, determinou a liberação de parte dos compulsórios e adotou outras medidas para garantir a liquidez no sistema financeiro.

Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central – Foto: Orlando Brito

A confiança de que o Tesouro Nacional irá honrar o pagamento de seus títulos dá lastro ao Banco Central para manter uma maior oferta de moeda na economia.

A oferta de moeda neste momento de queda da atividade econômica, desemprego e redução dos fluxos de negócios tem um papel, como vimos, de dar as mínimas condições de funcionamento do mercado. A moeda em si, como definem os economistas, tem três funções: estabelecer relação de trocas, unidade de conta e reserva de valor.

Dólar, refúgio em tempos de crise

Em momentos de riscos e instabilidades no mercado financeiro, o papel da moeda de reserva de valor ganha grande importância. A maioria das pessoas prefere ficar com papel moeda do que aplicar em títulos públicos e outros ativos, especialmente neste momento de queda das taxas de juros no Brasil.

Isto explica a valorização do dólar diante de outras moedas. Como o dólar é moeda conversível e faz parte do comércio e reserva de valor na maioria dos países, seu preço sobe.

O Brasil precisa ter moeda no mercado, mas seguindo as normas e procedimentos adotados pela maioria dos bancos centrais do mundo. O atalho pode piorar ainda mais a atual crise de confiança nos dirigentes do País.

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