59 anos depois: o que aprendemos?

É um despropósito que o golpe militar que instalou uma ditadura no Brasil, em um contexto bem diferente no país e no mundo, ainda sirva de pretexto para falsas polarizações. .

Foto: Orlando Brito
Uma das primeiras fotos do Golpe Militar de 1964, por Evandro Teixeira

31.3.1964. Rememorar, sempre. Para jamais repetir a barbárie. Um ato necessário, não inocente, com muitos ruídos na comunicação histórica.

A barbárie é um camaleão nas mutações em nome da liberdade e da igualdade. O século XX parecia um ser o limite para o terror.

E eis que estamos diante dos horrores de uma nova guerra em pleno século XXI. Mas basta relembrar seletivamente? Não há riscos gigantescos nessa memória caolha ao ampliar esquecimentos na exata medida em que alimenta maniqueísmos? E dessa maneira, reduzindo as possibilidades de resistência a todas as pestes e ovos da serpente? Sobre aquele fatídico 31 de março de 1964, algumas observações.

A queda do muro de Berlim

Contextos? Muro de Berlim (1961). Guerra Fria. URSS “exportando guerrilha” e nossos partidos comunistas – mundo afora, alinhados ao Comitê Central de Moscou ou a outros timoneiros da grande revolução. Um detalhe sem importância? Tem mais nesse xadrez das bestas.

A revolução Cubana (1959). Baía dos porcos (1961). Envio de soldados cubanos a vários países africanos (do Congo em 1965 até Angola, em 1975). Guevara saindo do Congo para morrer na Bolívia, em 1967. No Brasil os partidos comunistas seguiam acríticos, mesmo depois da denúncia dos crimes de Stalin por Khrushchov, em 1956. O PCB sempre manteve esse alinhamento com o Kremlin. O PC do B seguia a Albânia de Enver Hoxha, um gangster. Na China Mao Tse Tung inaugurava a Revolução cultural (1965/1975) buscando purgar os restos de elementos capitalistas e tradicionais e impor o seu pensamento.

Do outro lado temos os EUA com sua “pax econômica” a fórceps, planejando e executando golpes de estados em todo o “terceiro mundo”, em nome dos valores ocidentais e da democracia liberal. Filhos das classes médias que nào puderam fazer intercâmbio nos EUA sentiam-se fora de um indiscreto glamour.

Mísseis russos instalados em Cuba

Militares brasileiros se acotovelavam para ter uma formação de elite em West Point (EUA). Mísseis russos instalados em Cuba (1961). Adivinhem em qual direção?

EUA e aliados “desenvolvidos”. Um imperialismo, o nosso, versus o outro… , o dos comunistas. Imaginem o que as propagandas mundial e interna capitalizavam em milhões de brasileiros. Situação parecida com o nosso dilema de hoje na disputa entre EUA/China dissimulada na guerra Ucrânia/Rússia. Temos ou teremos que optar, não importa o desfecho do conflito. Optar não entre o bem e o mal, mas pelo menos pior. Escolha de Sofia.

O capital nós conhecemos. Os capitalismos disputam na guerra atual a hegemonia em tempos de um gigante decadente e sem lastro físico para sua moeda e outro gigante representando a ascensão de um capitalismo de estado socialista.

Soljenitisin

Do socialismo real não conhecíamos tudo, mas o suficiente para extrair uma legitimação do terror. Afinal, Soljenítsin sofria na pele e já divulgava aos poucos o inferno siberiano antes de publicar Arquipélago Gulag (1973). E o stalinismo já era sinônimo de totalitarismo.

Daí a pequena burguesia se insurgir, romanticamente, a lá Régis Debray, em armas contra os milicos. Afora o Araguaia, da guerrilha rural, todas as tendências e facções “revolucionárias” eram urbanas, e sem base social alguma. O subjetivismo dialético foi atropelado pelo verde oliva facilmente. Não se entra em jaula de leão sem ser arranhado.

É a minha geração. Com sofrimento, dezenas de amigos destruídos nessa loucura voluntarista. Mortos, torturados, desaparecidos, sequelas. O comemorar almejado pelos reacionários do Círculo Militar deveria ser um novo trazer à memória, sem festejos, o papel constitucional das Forças Armadas. Ajudaria muito a perceber a política internacional e as armadilhas de um anticomunismo primário e contra fático.

A “Comissão da Verdade” sempre me soou, e tenho amigos que nela participam, como não liberta de todo dos cacoetes stalinistas. Estive lá no governo Lula, em uma de suas sessões, a convite. Um festival passional um tanto revanchista e de avanços institucionais questionáveis. Pacificar seria o objetivo.

No Brasil não seguimos outros modelos de acerto de contas históricos, como o de Mandela na África do Sul, não punitivos, de perdão em troca de registros do que de fato aconteceu. As Forças Armadas são muito importantes desde a fundação da República (sem juízos de valor sobre o golpe de estado de 1889), integrando a tessitura social em vários níveis.

Capitão Carlos Lamarca, um dos principais líderes da luta armada contra a ditadura

Aqui os os militares tinham que receber o carimbo nacional de fascistas, e os outros, de bons meninos com a boa ética e justa causa histórica nas mãos. Lamarca, Marighela e outros líderes heroicos ajudaram a legitimar os militares com a violência estatal e paramilitar, prorrogando o tempo da exceção.

Sem maniqueísmo, por favor. Hoje a esquerda entraria numa luta armada em defesa do tio Sam salvador ou do bondoso Putin? É assim que militares e lulopetistas disputam o 31 de março, 59 anos após. Acirrando ressentimentos. Pior, fomentando falsa polarizações. Parecem aqueles roqueiros sobreviventes às drogas, septuagenários sem noção, cantando as mesmas canções de um protesto ainda mais vazio. O vazio de linguagem que acompanha a regressão. De todos.

O mundo já está numa guerra mundial. Não se enganem. Se chegará a ser um conflito nuclear, não sabemos. A confusão é parte da paralisia no discernimento típica de situações de medo e insegurança. A Rússia seduz parcelas de certa esquerda e de certa direita, e o mesmo ocorre com relação aos EUA. Ambos parecem desconsiderar o que subjaz à disputa: os poderes mercantis e geopolíticos. E parecem desconhecer que Biden ou Trump reúnem a direita à extrema direita. Democratas e Conservadores somente divergem em assuntos internos. Em termos externos acaba prevalecendo a ditadura dos seus interesses.

Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky – Foto Wikipédia/reprodução

O belicismo intrínseco aos EUA e vassalos na Ucrânia tendo a frente o fantoche Zelensky, poderia ser aprofundado nos seminários de militares e de lulopetistas, mas também entre bolsonaristas abertos a discutir história e cenários fora de modelos da Guerra fria.

Essa ciência política não se confunde com politização, mas com ampliação da capacidade de discernimento sobre eventos históricos. Afastando-se, portanto, da bobagem de festejar um golpe de estado ou execrá-lo, simplesmente, em busca de novas inquisições que mais alimentam um ódio que ajudam a pacificar nosso país.

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