Os bloqueios criminosos das rodovias, finalmente condenado por Jair Bolsonaro, e os atos golpistas pedindo intervenção militar nas portas dos quartéis não terão maior impacto no curso normal das coisas, que levará à posse de Luiz Inácio Lula da Silva em 1º de janeiro. Mas mostram o alcance da influência da máquina de manipulação bolsonarista na opinião pública – e alertam o novo governo sobre a urgência de tomar providências para desativá-la, se quiser governar em paz.
Os distúrbios dos últimos quatro dias do pós-eleitoral, ainda que claramente promovidos por minorias, colocam a vitória de Lula no patamar dos milagres. Na derrota, ficou mais do que nunca exposto o poderio do esquema de Jair Bolsonaro de utilização das redes – e sobretudo da deepweb – para propagar fakenews e mobilizar adeptos a ir às ruas.
Na campanha eleitoral, Bolsonaro juntou métodos da velhíssima política de uso da máquina pública – pressionando e ameaçando eleitores que recebem o Auxílio Brasil e outros benefícios, por exemplo – com as novas tecnologias de utilização das redes para disseminar mentiras, convencer e, também, ameaçar e pressionar eleitores.
Nada indica que, ainda que perdendo o poderio da máquina governamental, a espinha dorsal desse esquema de manipulação – o uso das fake news e das redes para mobilização – não continuará de pé. Até porque ele se sustenta num eixo paralelo ao governo, com recursos de radicais de direita da iniciativa privada e, sabe-se, até dos Estados Unidos.
Foi um milagre que a junção de todo esse poder de manipulação não tenha dado a vitória a Bolsonaro – mostrando que, de fato, ele é um presidente muito ruim. Mas a realidade agora é que, para ter tranquilidade, o Lula eleito com cerca de 2 milhões de votos de vantagem terá que desativar essa bomba.
É lógico supor que a maior parte dos 49% que votaram no atual presidente não são bolsonaristas-raiz, nem radicais de direita. Mas de alguma forma foram enganados e levados a pensar que um governo do PT traria o risco do “comunismo” no país, iria liberar o aborto, dar rédeas à corrupção e fechar suas igrejas.
Assim como boa parte daqueles que foram pedir intervenção militar ontem na porta dos quartéis terá sido manipulada em seus grupos de whattsapp e outros aplicativos, engolindo lorotas de que houve fraude eleitoral e que quem ganhou foi Bolsonaro.
Com o passar do tempo, no correr do novo governo, é até possível que percebam a empulhação de que foram vítimas. Mas isso pode não ocorrer se continuarem sendo diariamente abastecidos por discursos mentirosos e golpistas. Esse mecanismo de manipulação bolsonarista vai continuar existindo, porque atua abaixo da superfície.
Na campanha petista, quem chegou mais perto de atingir a máquina digital do bolsonarismo foi o deputado André Janones – ainda assim, vê-se agora, sua ação foi brincadeira de criança perto do que fez o adversário.
O governo Lula não pode e não deve governar na base de fake news, como faz seu antecessor. Mas também não pode ignorar que a bomba continua plantada em seu quintal. Deve cuidar de regulação para limitar a ação em plataformas e aplicativos, mas precisa urgentemente investir em equipes e recursos tecnológicos e pesquisas que lhe permitam mergulhar no pântano do adversário.
Antes de tudo, o governo – ou até os partidos de sua base, num trabalho paralelo – têm que ser capazes de detectar as ações criminosas de manipulação da opinião pública nos subterrâneos da web e reagir a elas, quem sabe até com uma espécie de “vacina digital” contra as mentiras. Depois disso, é possível que descubramos que o bolsonarismo radical é muito menor do que parece.