Só se assusta quem nunca assistiu aos arranca-rabos entre presidentes da Câmara e do Senado. Como aquele de quase vinte anos atrás, por exemplo, em que o senador Antônio Carlos Magalhães, comandante do tapete azul, chamou de “incompetente, invejoso, despeitado, sabotador e imoral” o então presidente da Câmara, Michel Temer. Brigavam por causa de uma reforma do Judiciário — que não saiu — e depois fizeram as pazes. Como saldo do entrevero, restou a Temer a nunca esquecida alcunha que ACM lhe pespegou: “mordomo de filme de terror”. Crises de poder no Legislativo têm muito de teatro em que, de olho em ganhos internos e externos, os protagonistas esticam a corda ao máximo para depois ceder e compor.
O duelo entre Arthur Lira e Rodrigo Pacheco em torno do rito das medidas provisórias seria mais um na história do parlamento e provavelmente terá um acordo como desfecho. O problema é saber o que está por trás e quem pagará a conta.
No Planalto, cresce um bem fundado temor de acabar levando uma bala perdida. Além de envolver a paralisação de MPs com atos importantes do governo — da estruturação Esplanada ao novo Bolsa Família — , o conflito tem como pano-de-fundo um Congresso ineditamente vitaminado, com mais poderes do que jamais possuiu. Ou seja, numa Casa ou noutra que acabe insatisfeita, é grande o potencial de danos a um governo sem maioria consolidada, sobretudo na Câmara de Lira.
Lira e Pacheco, apoiados por suas respectivas Casas, disputam poder — e não só nos tapetes verde e azul. O deputado não quer o retorno ao modelo antigo (e constitucional) de votação das medidas, em que partilhava com o Senado essa tramitação, que passava por comissões mistas e alternava relatores entre senadores e deputados. Na prática, não quer perder o protagonismo nas negociações — visíveis e invisíveis — que cercam a aprovação de cada MP — travadas não apenas com o governo, mas também com todos os setores intere$$ados.
A tramitação de uma MP é um manancial de ganhos para relatores, líderes e demais envolvidos. Resulta muitas vezes na inclusão nos textos dos chamados “jabutis”, itens que tratam de temas longinquamente correlatos à medida enviada pelo governo. Ninguém sabe bem como foram parar ali — mas, assim como jabutis em árvores, lá foram colocados por alguém.
Um célebre exemplo recente de ação entre amigos numa MP foi a privatização da Eletrobras — que hoje o governo Lula tenta reverter. Os parlamentares incluíram no texto da medida dispositivo tornando obrigatória, por exemplo, a contratação de poluentes termelétricas movidas a gás em várias regiões do país, o que exigiu novas obras de gasodutos. Nada a ver com nada? Tudo a ver com tudo para alguns, sobretudo para quem comandou a articulação — líderes, relatores, cúpulas da Câmara e do Senado.
Esse poder andou bastante concentrado nas mãos de Lira com o rito simplificado da pandemia, mas é hora de voltar à Constituição, como quer Pacheco. O deputado, que comanda a maioria da Câmara, resiste e usa a questão das MPs para engrossar um caldo de insatisfações na Casa. Sob seu comando, bancadas do centro e do centrão que, em tese, apoiariam o Planalto, aproveitam a oportunidade para exigir mais espaços no governo e recursos de emendas — ao menos como compensação pelo que pode ser perdido num acordo sobre medidas provisórias.
Integrantes da turma de Lira lembram que a composição do primeiro escalão do governo não contentou MDB, União e PSD na Câmara. Cada legenda tem três ministérios, mas estão nas mãos de senadores ou de indicações do Senado de Pacheco. Como o arranjo ministerial não gerou no tapete verde compromisso de fidelidade, e a liberação de recursos de emendas e cargos anda atrasada, Arthur Lira vê a chance de renegociar o contrato com Lula. Ministérios, segundo escalão, emendas, controle das MPs, entra tudo no pacote.
É por isso que, embora não queira se envolver demais no conflito — que sempre deixará insatisfeitos — o Planalto já percebeu que está afundado nele até o pescoço. Vai pagar, com juros mais altos do que os do Banco Central, o preço da paz entre Lira e Pacheco.