A mais violenta campanha militar contra miseráveis e fanáticos cidadãos nordestinos, no final do Século 19, deu origem a uma produção literária primorosa pelas mãos do escritor gaúcho Lourenço Cazarré. O livro de ficção “Amor e Guerra em Canudos”, que já está nas livrarias, trata de sentimentos humanos universais, da fome no sertão e de uma grandes catástrofe que é o fanatismo religioso.
Seus jovens personagens – uma mocinha que deseja ser professora, um poeta pernambucano e um oficial da Marinha inglesa – veem-se envolvidos em uma trama dramática de luta pela vida, entre os combates sangrentos, em busca de uma felicidade que só o amor pode proporcionar a eles.
Os registros históricos informam que, em 1893, o pregador Antônio Conselheiro cria uma cidade – que chegará a 25 mil habitantes – para abrigar miseráveis, doentes e desvalidos à espera de algum milagre. Seja por ignorância, seja por devoção ao falecido Imperador Dom Pedro II, atribuem seus problemas todos ao governo republicano, que desprezam.
A República, por seu lado, os considera inimigos do País. A única solução encontrada pelo regime nascente foi a das armas. Para lidar contra uma multidão rebelada, só os canhões e as baionetas. Apesar da grande vantagem em armas e soldados, o Exército teve muita dificuldade para dizimar os milhares de homens, mulheres e crianças. Os chamados jagunços de Conselheiro, mesmo em grande desvantagem de armamentos, conseguem provocar cerca de seis mil baixas nas forças oficiais, recrutadas em todo o País.
Veredicto em Canudos
Lourenço Cazarré leu sete vezes Os sertões, de Euclides da Cunha, desde 1977, quando teve o primeiro contato com a obra. Já naquela ocasião, começou a pensar em escrever sobre uma obra de ficção que tivesse Canudos como cenário. Mas só iniciou a redação de sua a obra em 2012, quando leu Veredicto em Canudos, do escritor húngaro Sándor Márai.
Este livro trata do último dia da guerra. Na primeira parte, Márai recria uma espécie de entrevista coletiva do Marechal Bittencourt, que comanda as tropas, com os jornalistas que estão no cenário de guerra. Um deles é Euclides da Cunha. Na segunda parte, o marechal tem uma longa conversa com uma mulher, uma irlandesa, que está entre os três últimos prisioneiros. Ela veio em busca do marido, um médico rico e famoso que abandona sua clínica para viver entre a gente.
Quando chega, a mulher não mais o encontra vivo. Mas permanece e fica fascinada pela vida na fortaleza de taipa, pela sua gente. Sándor Márai escreveu seu belo livro por força do impacto tremendo que sofreu ao ler a versão inglesa da obra-prima de Euclides da Cunha.
Já o premiado escritor gaúcho usa um texto vigoroso, limpo e elegante para narrar, pela boca de seus personagens, o cotidiano de pessoas que se submetem as privações de todas as dimensões, inclusive da dignidade, em busca uma vida melhor no céu.
Essa vida dura é contada pela jovem Maria Guilhermina, de 15 anos. Ela é cortejada por um jovem poeta e guerreiro pernambucano, que tem uma estampa semelhante a de seu ídolo, o poeta Castro Alves. Também um jovem e culto oficial inglês – que nas suas horas vagas traduz para o português brasileiro algumas cenas de Romeu e Julieta – se apaixona pela jovem baiana.
Nas declarações, conversas, cartas e poemas destes jovens, temos um retrato do Império do Belo Monte, como também foi conhecida a cidadela de Canudos.
“Como se soubesse ler pensamentos, certo dia Seu Noé parou ao meu lado e, depois de tamborilar com os dedos sobre o balcão, fez um comentário em voz baixa:
– Amor e guerra são como alegria e tristeza, andam sempre de dedos trançados.
Surpreendida, me voltei para o velho. Só nós dois estávamos no armazém. Seria aquela uma frase solta ou estaria ele insinuando que sabia das minhas preocupações?
– De dedos trançados?
– É isso mesmo, senhorita. Amor e guerra vivem agarrados, a mão de um na mão de outro, embora sejam um o contrário exato do outro.
– Como assim?
– Matutando sobre a batalha de Uauá, me acudiu uma ideia.
Todo aquele que perdeu a vida por lá ou amava alguém ou era amado por alguém. A morte atiça o amor dos vivos pelos que se vão deste vale de lágrimas. Daí eu concluí, menina, que a guerra sempre anda embaralhada com o amor”.
Neste trecho, a jovem Guilhermina está se referindo ao velho Noé, um antigo escravo, que comprou sua alforria, e que acompanha a família de comerciantes, os Serro Azul, até o sertão. A mudança da família de Salvador para a cidade miserável se dá porque o pai de Guilhermina, sobrinho do Conselheiro, espera fazer fortuna por lá.
Seu Noé, a sabedoria encarnada em um velho homem do povo, é quem estará sempre alertando a adolescente Maria Guilhermina sobre os perigos daquele mundo desconhecido e árido, que é o interior da Bahia.
Outra fala de seu Noé, sobre as plantas da região:
– Elas se fazem de mortas a maior parte do tempo, mas revivem na primeira chuva. O sertão é isso, menina. Aqui, mesmo quem está muito vivo, se faz de defunto pra enganar o Diabo, que é o dono dessa terra. O sertão é o inferno sem as labaredas.
Antônio Conselheiro também se fez de morto ao acabar com qualquer esperança do sobrinho comerciante de ganhar dinheiro em Canudos: “Sua felicidade aqui será apenas espiritual. Como desprezamos os bens materiais, você não vai ficar rico. Só há gente pobre morando aqui”, disse o Conselheiro.
O comerciante tentou remediar a situação dizendo que se contentava em estar ali pelo prazer de ajudar seu tio. “Aqui não temos prazer nenhum”, disse o líder religioso de Canudos. “Só rezamos e louvamos o bom Jesus”. O Conselheiro achava que mundo acabaria antes da pouca comida que ainda tinham.
Com experiência em mais de 35 anos em literatura para leitores juvenis, Cazarré publicou cerca de 50 livros, muitos deles premiados. Um deles ganhou o prêmio Jabuti, mais importante premiação da literatura brasileira.
Amor e Guerra em Canudos (Editora Yellofonte, 224 páginas),
tem preço de R$ 60,00 no livro físico e R$ 42,00 no e-book