Uma personagem rodriguiana

Nem Nelson Rodrigues teria tanta imaginação para escrever sobre a realidade da política brasileira

Damares Alves durante o evento religioso - Foto Igreja Assembleia de Deus Ministério Fama/Reprodução
Nelson Rodrigues – Foto Imagem do Fundo Correio da Manhã/Domínio Público

Outro dia vi nas redes sociais de um amigo que somente quem leu Nelson Rodrigues consegue entender Damares Alves. Definição precisa. Aliás, o mundo político está cheio de personagens rodriguianos. A ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, eleita senadora pelo Distrito Federal, se encaixa bem no perfil das personagens descritos nas crônicas que compõe a coletânea de “A vida como ela é” publicada no extinto jornal “Última Hora”, no começo da década de 50.

Essa semana Damares conseguiu a proeza de dividir as atenções da mídia e das redes sociais com a  acirrada campanha presidencial do segundo turno. Durante pregação na Assembleia de Deus, em Goiânia (GO), no último domingo, a senadora eleita fez um relato dramático de crianças traficadas para o exterior e submetidas a mutilações corporais e a regimes alimentares absurdos sofrendo abusos sexuais, na ilha do Marajó.

O vídeo com a denúncia viralizou nas redes sociais. A pregação, que parece ter sido direcionada a apoiar a campanha do presidente Jair Bolsonaro à reeleição, virou um problema para a ex-ministra, que agora terá que se explicar. Afinal, como titular da pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos, ela era a autoridade competente para determinar a apuração dos fatos e acompanhar essa apuração de perto. Deveria, no mínimo, ter acionado Ministério Público e a Polícia Federal.

A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público está pedindo explicações a Damares. O Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos disse que as falas foram baseadas em inquéritos, mas até agora não apresentou nenhum desses casos. Se verdadeiros, ela pode ser acusada de prevaricação.

Primeira-dama Michelle Bolsonaro e a ex-ministra Damares Alves – Foto Divulgação

A questão é que parece não ser verdade. A colunista Malu Gaspar, do Globo, disse que a Polícia Federal desconhece a denúncia. Admite que investiga muitos casos de pedofilia no estado, mas nada parecido com o que foi relatado durante o culto. Além disso, matéria do repórter André Duchiade, publicada pelo Jornal O Globo na última terça-feira, revela que narrativas semelhantes ao suposto crime descrito por Damares  apareceram, em 2010, publicadas no site 4chan, conhecido por seu conteúdo satírico e de violência extrema.

De acordo com a matéria, o próprio site alerta que “as histórias e informações aqui encontradas são obras artísticas de ficção e falsidade. Só um tolo tomaria qualquer coisa encontrada aqui como fato”. Se for mentira, a ex-ministra não apenas terá que se explicar às autoridades, mas já chega ao Senado desacreditada. Reduz muito seus planos de presidir a Casa, pelo menos no primeiro biênio.

Magno Malta – Foto Divulgação

O que assusta em pessoas como a Damares é que, apesar de ter sido eleita na esteira bolsonarista, ela, assim como seu ex-chefe, Magno Malta, eleito senador pelo Espírito Santo, fazem parte de uma outra força política que vem crescendo de forma exponencial no Brasil: os evangélicos neopentecostais.

A turma liderada por Edir Macedo, Malafaia & Cia Ltda., não mede esforços para chegar ao poder. Já apoiaram o PT em eleições anteriores – Macedo apoiou inclusive a reeleição da Dilma- e encontraram em Bolsonaro, graças à primeira-dama Michele Bolsonaro, espaço para crescer ainda mais e ampliar sua influência política.

Os evangélicos estão se tornando uma força política relevante, capaz de ajudar a eleger ou a derrubar qualquer candidato. Trabalham para construir um nome  em condições disputar a presidência da República nos próximos anos sem precisar se aliar a políticos fora das hostes evangélicas.

Ibanes Rocha e José Roberto Arruda – Foto Agencia Brasil/Divulgação

Damares é a prova disso. Embora tenha sido eleita como senadora de Bolsonaro, foi preterida pelo presidente pouco antes do início da campanha. O acordo fechado com o governador do DF, Ibaneis Rocha, e com o ex-governador José Roberto Arruda, previa eleger Flávia Arruda ao Senado deixando-a de fora da disputa ao Senado, podendo concorrer, no máximo, a uma vaga na Câmara dos Deputados.

Com apoio de Michelle e da Igreja, Damares insistiu na disputa e venceu com folga Flávia Arruda.

Todo mundo sabe que política e religião não devem se misturar. Os iranianos e outros povos mundo afora podem nos dar bons depoimentos sobre os resultados disso.

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