Nós, os autistas

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Se a única coisa que você conhece sobre o autismo é “Rain Man”, de 1988, filme exemplar sobre todos os aspectos por introduzir aspectos do autismo a boa parte do mundo, na encarnação magistral de Dustin Hoffman, está na hora de entender mais sobre esse espectro – e os direitos de seus portadores, especialmente no Brasil. O filme foi extremamente relevante para a apresentação do autismo, mas também contribuiu para provocar erros de interpretação, já que reduzia, aos olhos do grande público, os sintomas desse transtorno à imagem do personagem hollywoodiano. Mas foi um começo. O autismo é um problema psiquiátrico que costuma ser identificado na infância, entre 1 ano e meio e 3 anos, embora os sinais iniciais às vezes apareçam já nos primeiros meses de vida. O distúrbio afeta a comunicação e capacidade de aprendizado e adaptação ao mundo. Mas não o desenvolvimento físico. Em um mundo – cada vez mais – habituado a rejeitar a diferença, e tudo o mais que não entende, o autismo pode ser particularmente cruel com meninos e meninas, homens e mulheres, que lidam com ele o resto de suas vidas. Cada um de nós pode ajudar a mudar a realidade. É só cobrar.

Por terem grande dificuldade para firmar relações sociais ou afetivas, em pleno mundo hiperconectado, e darem mostras de viver em um espaço todo seu, sem redes e interligações, o autista é uma ilha na sociedade globalizada. Que não pode ser assoreada, sedimentada, isolada. Como ser autista em um mundo onde, segundo a Cisco, o volume de dados trafegados pela Web em cinco minutos é igual ao tamanho total de filmes já feitos no mundo. E que o tráfego de dados chegou a um zetabite, cerca de 200 vezes o tamanho de todas as palavras já faladas por seres humanos. Por isso, a primeira lição é: nem todo mundo pode, quer ou deseja entrar na bolha. Segundo: o autismo não se cura, se compreende. Apesar de não haver remédio que cure, o tratamento eficiente inclui apenas respeito, informação, tolerância e apoio. E o maior inimigo é o preconceito.

O Transtorno do Espectro Autista (TEA) abarca um amplo universo de indivíduos com quadro clínico de déficit, em maior ou menor grau, em pelo menos uma das seguintes áreas: interação social, comunicação e comportamento. Em contraposição a esse ambiente de dúvidas quanto às origens, ao próprio diagnóstico e ao prognóstico, há um consenso no conjunto da sociedade: em uma perspectiva de inclusão, são necessárias adaptações para melhor conviver com os autistas e a eles garantir qualidade de vida. Do ponto de vista normativo, existe uma lei, Berenice Piana (Lei nº. 12.764/12), que trouxe inúmeras conquistas para os portadores do Transtorno Global do Desenvolvimento.

Mãe de autista, Berenice Piana foi a primeira brasileira a conquistar aprovação de lei por meio de iniciativa popular. Foto: reprodução da internet.

No âmbito escolar, um dos mais expressivos avanços é o direito a um acompanhante especializado. Berenice é mãe de três filhos, sendo o caçula autista, o que lhe motivou à luta em defesa das pessoas com esse transtorno. Por conta disso, ela idealizou a primeira clínica Escola do Autista do Brasil, implantada em Itaboraí, no Rio de Janeiro, em abril de 2014, além de participar da criação de leis em defesa do autista em vários municípios e estados brasileiros. Não se envergonhe se não conhecia a lei. Só de não fazer algo a respeito daqui pra frente.

No contexto da educação, há uma ampla normatização, merecendo um destaque a Lei 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), que em seu artigo 59, dispõe que todas as escolas devem assegurar aos estudantes um atendimento adequado às suas necessidades. Currículos, métodos, técnicas, recursos educativos e organização específicos devem atender às suas necessidades, com professores com especialização adequada em nível médio ou superior, para atendimento especializado. Na prática, instituições de ensino devem – ou deveriam! – desenvolver estudos, levantamentos, debates e práticas pedagógicas, bem como promover cursos, simpósios, seminários e outros eventos, buscando a formação e atualização de recursos humanos para atuar com as crianças e adolescentes inseridos no espectro autista, só assim garantindo a habilitação de seus profissionais. Passados alguns anos da entrada em vigor da Lei 12.764/12, não é possível afirmar que o direito ao acompanhante especializado é efetivamente garantido aos estudantes autistas que dele necessitam. O Ministério Público tem proposta ações civis públicas para garantir o direito, sem qualquer custo extra, para a família dos estudantes.

O Brasil possui uma avançada legislação, seguindo uma atmosfera global de inclusão dos autistas. A Lei Berenice Piana trouxe uma série de significativos avanços, sendo alguns de ordem pedagógica, como o direito ao acompanhante especializado. Cumprir leis, nesse país, como se sabe, não é tarefa fácil. Em audiência pública na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa no dia 18/06, feito com base em visitas a 19 instituições de acolhimento nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e no Distrito Federal, entre novembro de 2016 e março de 2018, esses abrigos não proviam mais do que as necessidades básicas de seus residentes, com poucas oportunidades de contato relevante com a comunidade ou de desenvolvimento pessoal. O uso de medicamentos sem prescrição terapêutica e condições degradantes foram outros problemas encontrados. A perspectiva de contexto dos autistas é, simplesmente, mais restrita.

Diante do abismo entre intenção e realidade, política e prática, foram incentivadas propostas como a Sugestão Legislativa (SUG 21/2017), transformada em projeto de lei (PLS 169/2018), para assegurar a criação de centros de atendimento integral aos autistas, mantidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A sugestão foi aprovada em 4 de abril, depois de reunião em que pais cobraram o cumprimento da lei específica para os autistas, a Lei Berenice Piana.

Outra demanda é a aprovação do PL 6575/2016, da deputada federal Carmen Zanotto (PPS-SC), que torna obrigatória a coleta de dados e informações a respeito das pessoas com espectro autista nos censos demográficos do IBGE, a ser realizado a partir de 2020. Hoje isso é solenemente ignorado. O projeto tramita em caráter conclusivo na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Se aprovada a admissibilidade, a proposta será encaminhada ao Senado. Estima-se que dois milhões de pessoas apresentem algum Transtorno do Espectro do Autismo, só no Brasil. Por fim, e isso já foi dito por alguém, lembre-se que autismo é apenas uma palavra. Não uma sentença. Não tratemos nossos brasileirinhos e brasileirinhas com autismo como uma sociedade insolúvel. Em certos aspectos, e conceitos, eles são a solução.

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