Qual é a real letalidade da covid-19?

A adoção do isolamento social ou lockdown têm forte influência das taxas de letalidade calculadas pelo Imperial College of London. Neste artigo, o médico Fabio Jung detalha os números encontrados até agora, mostrando a fragilidade dos primeiros levantamentos e cotejando-os com outros estudos. Comparando com pandemias anteriores, ele mostra como é difícil, em tão pouco tempo, calcular o número correto de letalidade. Por isto, é preciso cautela na tomada de decisões

Tedros Adhanom Gebreyesus, diretor-geral da Organização Mundial de Saúde, a OMS, numa de suas coletivas diárias

Nossos governantes estão na situação difícil de tomar decisões com enorme impacto na vida de milhões de pessoas com base em informações ainda bastante imperfeitas. Estamos enfrentando uma grave pandemia como não se via desde 1918, que ameaça colapsar o nosso sistema de saúde, com um grande número de mortes.

Ao mesmo tempo, é imperativo equilibrar o risco da epidemia sair de controle com o risco de uma recessão sem precedentes, que irá necessariamente causar mortes e sofrimento, especialmente nas camadas sociais mais vulneráveis. A recessão já parece inevitável, mas a escala vai depender muito da duração e severidade da epidemia e das medidas de controle. O presidente da Organização Mundial de Saúde, Dr. Tedros Adhanom, nascido na Etiópia, mencionou a necessidade de ajuste das políticas públicas para as condições socioeconômicas de cada país.

É muito difícil determinar a mortalidade de uma pandemia durante a evolução da mesma. A prestigiada revista Lancet publicou uma análise revisando a mortalidade da COVID-19 para 0,66%. Relato da Organização Mundial de Saúde em 5 de março estimava a mortalidade em 3,4%, uma revisão de mais de 5 vezes este valor em menos de um mês.

Durante a pandemia de H1N1, em julho de 2009, o grupo do professor Neil Ferguson, do Imperial College de Londres (também o mesmo do artigo do Lancet), que publicou o modelo que tem fundamentado as políticas mais severas de lockdown, estimou a letalidade dos casos de H1N1 em torno de 0,5%, em artigo no British Medical Journal. O Centro para Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos depois publicou uma estimativa de 12.469 mortes para 60,8 milhões de casos entre julho de 2009 e julho de 2010, uma letalidade de 0,021%, mais de 24 vezes menos que a estimativa inicial.

Para podermos definir as estratégias e políticas públicas mais adequadas para o combate à pandemia da COVID-19 é fundamental compreendermos a taxa de letalidade e de hospitalizações provocadas primariamente pela doença, em todos os indivíduos infectados pelo SARS-CoV-2 (nome oficial do vírus). Uma estimativa exageradamente baixa destas taxas levará a medidas brandas, ou mesmo nenhuma medida (como é comum nos surtos de influenza sazonal), o que resultará em um número excessivo de mortes e potencial colapso no sistema de saúde. Uma estimativa exagerada pode induzir as autoridades e o público a tomar medidas muito rígidas de isolamento, com colapso da atividade econômica por período prolongado e consequências humanitárias e sociais graves e imprevisíveis.

A Europa conta seus mortos – Reprodução: EuroNews

A taxa de letalidade pela infecção (vamos usar IFR, de Infection Fatality Rate) é calculada dividindo-se o número de mortes atribuídas primariamente ao vírus pelo número total de casos de infecção. A taxa de hospitalização é calculada dividindo-se o número de casos que requerem hospitalização primariamente atribuída ao vírus pelo número total de casos de infecção (vamos chamar de IHR). Como referência, podemos usar os dados do CDC para a influenza sazonal no inverno de 2017-2018 nos Estados Unidos. No limite superior do intervalo da estimativa do CDC, houve 94.987 mortes atribuídas à influenza para 39,3 milhões de infectados no limite inferior. A IFR neste caso foi de 0,24% e a IHR foi de 2,1% para 808,129 internações hospitalares no período.

O grande problema é que, como já foi dito, durante uma pandemia é muito difícil estimar tanto o numerador (número de mortes ou hospitalizações atribuídas ao vírus) quanto o denominador (número total de infectados) para estas taxas. Em artigo na revista Science, Jeffery Shaman, da Escola de Saúde Pública da Columbia University, estima que em Wuhan 86% dos casos totais de infecção não foram registrados. Na Itália, o chefe Agência de Proteção Civil, Angelo Borrelli, estima que existem 10 vezes mais casos do que aqueles oficialmente diagnosticados.

É fácil de entender este viés, uma vez que apenas os casos mais sintomáticos são diagnosticados no início, e este fenômeno evolui para apenas casos mais graves sendo diagnosticados, como aconteceu na Itália de acordo com artigo no Journal of the American Medical Association (JAMA) publicado pelo Dr. Silvio Brusaferro do Istituto Superiore di Sanitá, de Roma, em 23 de março.

Desta maneira, o denominador do cálculo de letalidade pode estar subdimensionado de 7 a 10 vezes, ou talvez um valor maior ainda, como foi o caso na já mencionada pandemia da Gripe Suína (H1N1) em 2009. Em 26 de junho de 2009, o CDC contabilizava 27.717 casos de H1N1 nos Estados Unidos, embora em 25 de junho o mesmo CDC havia anunciado uma estimativa de que cerca de um milhão de pessoas havia sido infectada no país.

Neste caso, o denominador era 36 vezes maior. Desta forma, todas as estimativas iniciais de letalidade e hospitalização foram superdimensionadas por um fator de 36 vezes. No início da pandemia, os relatos iniciais eram alarmantes, com letalidade chegando a 2-3% em alguns relatos e expectativa generalizada de colapso do sistema de saúde.

O professor Silvio Brusaferro

O outro problema é dimensionar o numerador durante uma pandemia. No mesmo artigo do Dr. Brusaferro, em 1.625 óbitos de 22.512 casos publicados no JAMA, os pacientes tinham em média 2,7 patologias crônicas sérias, cada um. A idade média era 83,7 anos para as mulheres e 79,5 anos para os homens, próximo portanto da expectativa média de vida na Itália, que foi 83,4 anos em 2019.

A política adotada foi considerar, de início, 100% das mortes em pacientes positivos para SARS-CoV-2 como mortes causadas por COVID-19. Um paciente com doença grave terminal, porém testando positivo para a doença, foi classificado como óbito causado pela COVID-19. O Dr. Walter Ricciardi, presidente do Istituto Superiore de Sanitá, declarou ao The Telegraph que “após reavaliação pelo Istituto Superiore di Sanitá, apenas 12% das mortes demonstraram uma causalidade direta com o coronavírus”. Isto reduz o numerador em 8,3 vezes.

Combinando estes números, podemos chegar a uma letalidade baixa, inferior mesmo à da influenza sazonal. A Itália tem hoje 10,779 óbitos em 97,689 casos, uma mortalidade muito alta, de 11% olhando-se os dados brutos, o que todos concordam que é um número exagerado.

O próprio Imperial College usa 0,9% em suas projeções e já fala em 0,66%. Ajustando o numerador para 8,3 vezes menos, e o numerador para 86% de casos não detectados, chegamos a 0,19%, similar à influenza nos Estados Unidos em 2017-18 no limite superior do intervalo de confiança.

Aplicando-se um denominador 36 vezes maior, a IFR é 0,036%, na Itália, país mais impactado pela pandemia até agora. Em artigo no Wall Street Journal em 24 de março, os Drs. Eran Bendavid e Jay Bhattacharya, professores de Medicina e Saúde Populacional em Stanford, fazem uma série de simulações parecidas e obtêm taxas de letalidade ainda mais baixas, até 0,01% dependendo das premissas.

Modelos como o do Imperial College of Medicine tem sido a base das políticas de isolamento em quase todos os países, embora Suécia e Japão, para citar apenas dois casos, têm adotado medidas muito mais brandas, com quase nenhuma restrição das atividades sociais e econômicas. Estes modelos são construídos com base em um número muito grande de premissas que, como discutimos, podem variar de 0,01% a 0,9%, uma diferença de 90 vezes.

O modelo dos Departamentos de Medicina e de Zoologia de Oxford, por exemplo, estima que mais de metade da população do Reino Unido já pode ter sido infectada, o que implicaria em uma letalidade ordens de magnitude inferior aquela sugeridas pelo modelo do Imperial College. Se o modelo de Oxford fosse tomado como verdade quase absoluta, assim como o modelo do Imperial College, resultaria em medidas mais brandas de controle da doença.

Nenhum destes modelos foi peer reviewed, o processo de revisão rigoroso por outros especialistas independentes que toda publicação científica qualificada realiza. Mas os dados do Imperial College foram de fato adotados como verdade, na maioria dos países.

Seria o mesmo que, como analogia no mercado financeiro, um determinado banco de investimentos de primeira linha publicar uma estimativa para o câmbio em dezembro de 2021, com base em um sofisticado modelo financeiro, e quase todo o mercado investir pesadamente baseado neste modelo único.

Atendimento médico no Brasil às vítimas da covid-19 – Foto: Pedro Guerreiro/Agência Pará

Além disto, o artigo do Imperial College, de 16 de março, fala que “as medidas de supressão precisarão ser mantidas até uma vacina ou tratamento ser desenvolvido; no caso da COVID-19, será pelo menos 12-18 meses até uma vacina ser desenvolvida”. Isto é claramente inviável para o Brasil (para a maioria dos países) e lembramos que até hoje não existe vacina para HIV, hepatite C, ebola, e vários outros vírus. Talvez nunca tenhamos uma vacina eficaz para SARS-CoV-2. Precisamos pensar em alternativas viáveis e adequadas à real magnitude do problema, que ainda está sendo determinada.

O objetivo desta análise é alertar sobre a necessidade urgente de buscarmos dados mais confiáveis para embasar as políticas públicas, de maneira alguma minimizar a gravidade da pandemia e a necessidade de medidas eficazes para controle da mesma. Mas os riscos envolvidos são muito grandes para simplesmente adotarmos um modelo, de um único grupo, por mais qualificado que este seja.

Temos instituições de saúde como a Fiocruz, com reputação internacional e que podem coordenar este esforço, olhar outros modelos epidemiológicos e apresentar alternativas viáveis. Qualquer decisão precisa necessariamente contemplar esta incerteza.

Fabio Jung é médico formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, post-doctoral fellow do MD Anderson Cancer Center de Houston, TX e MBA em Finanças e Health Care Management pela Wharton School da Universidade da Pensilvânia

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