Pátria Armada: sem projetos, sobram projéteis

Manifestação pró Bolsonaro - Foto Orlando Brito

A morte infecta a trajetória viscosa do capitão Jair Bolsonaro. Ao seu redor tudo recende a purulência e necrofilia. Seus ícones – Brilhante Ustra, Major Curió, Alfredo Strossner, Augusto Pinochet – são matadores sanguinários, alguns condenados. Seus amigos e vizinhos são homicidas da milícia carioca, rastilho da decomposição institucional, consumada na execução da vereadora Marielle Franco. A insipiência e inépcia para administrar o morticínio diante da pandemia – prescrevendo ilegalmente medicamentos ineficazes – nos humilhou mundialmente com vexaminosos índices de mortalidade e contaminações. O capitão inventou a modalidade presidencial de vadiagem inanimada.

O gesto da arminha e a simulação de fuzilar oponentes macularam a eleição presidencial. A morte é a meta e o ódio o método, desde quando pregou abertamente o extermínio de 30 mil brasileiros. São quase 100 mil óbitos em 5 meses de pandemia sob gargalhadas escarnecedoras e descaso contemplativo. O genocídio foi o estopim de representações no Tribunal Penal Internacional. Apesar disso, as rajadas reiteradas do capitão é para armar a sociedade. Foram muitos decretos com intuito de abrandar a lei e banalizar o acesso a armas e munições.

Na primeira tentativa de sacar contra o estatuto do desarmamento, Bolsonaro foi alvejado. Com poucos meses de mandato o capitão deu o primeiro tiro no pé. O Senado rejeitou por 47 votos a 28 um decreto assinado em maio de 2019 que buscava flexibilizar a posse e o porte de armas no Brasil. O plenário aprovou o projeto de decreto legislativo que encharcou a pólvora do capitão. O decreto autorizava a concessão de porte a 20 categorias profissionais e aumenta de 50 para 5 mil o número de munições disponíveis anualmente a cada proprietário de arma de fogo.

Deputado Ivan Valente – Foto Orlando Brito

Após o tiro pela culatra e o capitão revidou multiplicando o arsenal. Muitos decretos posteriores foram judicializados. Recentemente, a justiça de São Paulo abateu um deles, o que aumentava o limite da compra de munição de 200 para 550 unidades mês. A ação popular em que Bolsonaro foi réu em São Paulo é de autoria do deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP). O parlamentar argumentou que o texto do presidente autorizando o aumento da aquisição de munições pela população foi editada com base em um parecer de um militar que já deixou o governo. Desta forma, se a motivação é inválida, a portaria não pode existir.

A obsessão por armar a população tem a mira torta da psicopatia. Na rumorosa reunião ministerial de 22 de abril o capitão levou novamente a mão ao coldre: “Um puta de um recado para esses bostas: estou armando o povo porque não quero uma ditadura, não dá para segurar mais. (…). Por isso que eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme! Que é a garantia que não vai um filho da puta aparecer pra impor uma ditadura aqui!”, disse Bolsonaro a um aparvalhado Sérgio Moro, responsável pelo tiro de misericórdia contra o principal adversário do capitão quando era juiz. No mesmo encontro, Paulo Guedes plantou uma granada no bolso dos servidores.

A cruzada contra a vida não poderia redundar senão em estilhaços trágicos e mórbidos, agravando a pandemia. O número de registro de armas no Brasil explodiu. O aumento foi de 205% apenas no 1 semestre de 2020. O crescimento de homicídios no mesmo período foi de 7%. É inequívoca e histórica a curva do crescimento das mortes violentas atrelada ao aumento do número de armas em circulação. Perto de 40% das apreensões de armamentos em poder dos criminosos têm origem legal.

Bolsonaro e o filho Flávio

É pacífico que a posse de arma de fogo não protege quem a detém. Ao contrário, potencializa o risco. O cidadão de bem é sempre o surpreendido e não tem a perícia dos marginais. O próprio capitão Bolsonaro, que faz apologia do tema, foi assaltado no Rio de Janeiro. Dois ladrões roubaram uma motocicleta e uma pistola. “Mesmo armado me senti indefeso”, disse à época. Liberar o acesso às armas significa objetivamente franquear arsenais à milícia amiga, cuja legalização já foi advogada pelo capitão e o filho, Flávio Bolsonaro.

Há 15 anos, a sociedade foi consultada sobre proibir a venda de armas e munição. A tese foi rejeitada por 63, 94% dos eleitores contra 36,06% favoráveis à vedação. A campanha foi marcada pela desinformação e deturpada dolosamente como subtração de direitos. Foi também o primeiro disparo em massa de fake news. A distribuição de e-mails falsos levou pânico à sociedade. Um dos principais foi a fictícia comemoração de traficantes em um morro carioca, festejando que apenas eles teriam armas se a proibição fosse vencedora. Na contramão da morte, as pesquisas recentes continuam a calibrar a alta rejeição ao mascate das armas: Mais 70% se opõem às flexibilizações.

O método de armar a população é a artilharia característica dos regimes totalitários, que camuflam a belicosidade e o fascismo em estampidos que buscam silenciar os alicerces democráticos. Em 2006, Hugo Chávez, ex-presidente da Venezuela, falou ao povo, depois de comprar milhares de fuzis russos: “A Venezuela precisa ter 1 milhão de homens e mulheres bem equipados e bem armados. (…) Os gringos querem nos desarmar. Temos de defender nossa pátria”.

Benito Mussolini com Adolf Hitler

Outro ditador, executado depois de ser capturado fugindo nos últimos dias da guerra, foi o fascista Benito Mussolini, na Itália: “um povo armado é forte e livre”. A pregação foi durante um discurso para cem mil italianos feito na Sicília, segundo um jornal da época. Os franquistas também ruminavam o “viva la muerte”. Nada difere o capitão. Eis o que excreta Jair Bolsonaro: “Eu quero todo mundo armado. O povo armado jamais será escravizado”. O que ele ambiciona é um exército particular, comandado por milicianos, como Fabrício Queiroz. Tudo isso sob o silêncio pusilânime das forças armadas.

O pendor armamentista desses ditadores, antigos e recentes, todos fracassados, converge com o belicismo do capitão que ribomba discursos e éditos a fim reduzir o controle na venda e armas e cartuchos. Recentemente ele foi brindado com um souvenir que sintetiza sua índole mortuária e reúne suas predileções demoníacas: uma arma fake. Na pátria armada, em razão do absoluto vácuo programático e da completa obtusão, o capitão trocou os projetos pelos projéteis. Não descobriu a pólvora.

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