O dia em que a corrupção acabou

Se o mandatário que ora nos governa disse que a corrupção acabou... é porque acabou. Ou não?

Naquele dia ensolarado de outubro, médico e paciente se encontraram para uma consulta de rotina. Após as reclamações habituais sobre o calor infernal, conversa agora obrigatória para esses dias estranhos de primavera, um novo e curioso diálogo se desenrola entre a dupla:

Médico – Você sabia que a corrupção acabou no Brasil?

Paciente – Nãão!! É verdade?

Médico – Sim. Você não soube?

Paciente – Não. Conte-me tudo!

M – Pois é. Acabou.

P – Assim?

M – Assim.

P – Como você soube?

M – O Presidente disse. Está nos jornais.

P – Jura????

M – Sim!!!!

P- Nossa, que fantástico! Mas não há mais mesmo?

M – O quê?

P – A corrupção.

M – Não. Pois já não lhe disse que o homem falou que acabou?

P – É. Disse. Muito bom isso.

M – Muito bom??? Isso é sensacional! Não foi para isso que vestimos verde e amarelo e enchemos as ruas em 2015?

P – É que achei um pouco estranho. De um dia para o outro? Aconteceu alguma coisa?

M – Não. Mas se ele disse que acabou é porque acabou, não é? Exatamente hoje, no dia 07/10/2020. Data histórica!

P – E eu que nem sabia que essas coisas acabavam assim… Mas se você tá dizendo…

M- Eu, não! O Presidente!!!

P – Ahh… é. Igual à covid, né?

M – Como assim?

P – A covid não acabou?

M – Não.

P – Não? Como não?? Tá todo mundo se aglomerando nas praias, nos bares, nos parques, nos shoppings, nas festas…

M – Realmente as pessoas estão fazendo isso. Mas não quer dizer que acabou. Eu sou médico, recebo pacientes infectados diariamente. E o número de mortos ainda é enorme.

P – Ahhh. Que estranho… Bom, mas então é só esperarmos o dia que o Presidente declarar que a pandemia acabou . E acho que ele deve marcar uma data logo, logo. E quando decretar, acabou!

M – Meu caro, você está enganado. Uma pandemia não acaba assim, do dia pra noite. Não depende só da palavra do Presidente. Depende de muitas outras coisas: da ciência, das estatísticas, da infraestrutura, dos hospitais, etc.

P – E com a corrupção é diferente?

Visivelmente irritado, o médico rapidamente desconversa, entrega a receita e as prescrições para o paciente, alinhavando o fim da consulta.

P – Obrigado, doutor. Quanto é a consulta?

M – Com recibo é 500 reais. Sem recibo é 300 reais.

P – Prefiro sem recibo. Mais barato, não é?

M – Claro. Sem dúvida. Recuso-me a pagar Imposto de Renda para esse monte de corruptos que sempre estiveram nos governos.

P – Mas a corrupção não tinha acabado hoje?

M – É mesmo. E agora?

 

P – Agora você poderá cobrar 300 reais com recibo. E assim você saberá que o dinheiro recolhido para o IR irá diretamente para a construção de escolas, hospitais e outros serviços importantes para a sociedade.

M – Huuumm. Por enquanto vamos deixar do jeito que está, ok? Na próxima consulta a gente vê.

P – Por quê? Você não disse que a corrupção acabou hoje? Se a corrupção acabou hoje não há mais como como você justificar a cobrança diferenciada.

M – M…mmmas a consulta tinha sido agendada para o dia 05.

P – Sim, mas o Sr. mesmo a desmarcou. Disse que tinha um compromisso urgente para o dia 05.

M – Não. O pedido de adiamento foi seu.

P – Não foi. Mas não importa. Hoje é dia 07 e não há mais corrupção.

M – Quem disse?

P – O Sr.

M – Eu, não. O Presidente.

P – Isso. Yhb.

M – E o Sr. acreditou?????

* Eliane de C. Costa Ribeiro é juíza do Trabalho aposentada

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