Menem e as relações carnais

O ex-presidente Carlos Menem, da Argetina - Foto Orlando Brito

Quando assumi a Presidência da República, tive a grande felicidade de encontrar um companheiro de visão do mundo, Raúl Alfonsín, presidindo a Argentina. Tornou-se um querido amigo, de quem eu e a Argentina sentimos imensa falta. As relações entre nossos países estavam marcadas por preconceitos de ambas as partes, que se estendiam às populações. Éramos vizinhos voltados de costas um para o outro. Com coragem Alfonsín aceitou meu convite para visitar Itaipu, considerada pelos militares argentinos como uma ameaça mortal. A partir daí estruturamos uma aliança que nos deveria conduzir para uma união latino-americana nos moldes da União Europeia.

Participamos do que Perez de Cuellar disse ser a maior onda de redemocratização do mundo, incluindo muitos países da América Latina. Internamente, no entanto, tivemos que enfrentar grandes desafios para implementar a transição para a democracia nos dois países.

Lá e cá criou-se a ideia de que a simples assunção do poder civil bastava para resolver todos os problemas. Mas enfrentamos grandes desafios, sobretudo no setor econômico, inteiramente desestruturado e com enormes problemas inflacionários. Não conseguimos solidariedade para resolver os problemas da dívida externa e escapar da tutela do FMI.

Agimos juntos no plano internacional, não nos deixando arrastar para aventuras. Junto com o Presidente do Uruguai, Julio Sanguinetti, Alfonsín e eu criamos o Grupo de Apoio a Contadora para não entrarmos para o Grupo de Contadora e ser arrastados para as guerras da América Central, nebulosas e trágicas. Óscar Arias, da Costa Rica, que partilhou de nossa posição, ganhou então o Prêmio Nobel da Paz.

Os ex-presidentes Sarney e Alfonsín – Foto Orlando Brito

Na Argentina Alfonsín resolveu antecipar a transferência do governo para seu sucessor, o peronista Carlos Menem. Eram os meses finais de meu governo. Menem tinha ciúme mortal de minha relação com Alfonsín e obsessão com os EUA. Queria ser “aliado preferencial” e forjou, por seu chanceler, um dogma: Argentina devia ter “relações carnais” com os Estados Unidos. Ofereceu-se de todas as maneiras, mas não quiseram levá-lo para o leito nupcial.

Sugeriu entrar para a OTAN, ouvindo do espanhol Solana a lembrança da geografia escolar de que seu país não estava no Atlântico Norte. Argumentava que nós também tínhamos nos metido com a Europa, participando das duas guerras mundiais. Ele, então, enviou duas fragatas para a Guerra do Golfo!

A aliança que Alfonsín, Sanguinetti e eu estabelecemos visava, como disse, à integração plena. Mas Carlos Menem tinha sonhos de pertencer ao Primeiro Mundo. No governo teve muitas dificuldades, principalmente de ordem econômica. Soube enfrentá-las e foi um grande líder político, dando uma nova face ao peronismo, que com ele deixou o radicalismo de esquerda para ser um partido que incorpora algumas teses do liberalismo.

Com todas as dificuldades, foi um presidente que, pelo seu estilo, deixou sua marca na História da Argentina.

— José Sarney é ex-presidente da República, ex-senador, ex-governador do Maranhão, ex-deputado. Escritor. Imortal da Academia Brasileira de Letras (Artigo publicado também no jornal O Estado do Maranhão)

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