É Sempre a Hora da Nossa Morte Amém

O entrelaçamento entre morte e vida, permeado por memórias reais e fictícias, são a matéria-prima do romance de Mariana Salomão Carrara, que dá título a esta resenha. A obra integrou a lista das dez finalistas do Prêmio Jabuti de Literatura de 2022

"A morte é o seu tema, mas a vida é o que parece importar", resume a cronista sobre a obra de Carrara

Belíssimo e comovente romance escrito por Mariana Salomão Carrara, classificado entre os dez finalistas do Prêmio Jabuti de Literatura de 2022.

Prêmio Jabuti homenageia personalidades que se destacaram na literatura em 2022 – Foto: Reprodução / Instagram @cbloficial

Sob o instigante título “É Sempre a Hora da Nossa Morte Amém” (Editora Nós, 2021) é inspirado em uma das mais populares orações do nosso imaginário, o livro de Mariana Salomão Carrara desfia o universo mental de sua protagonista.

Trata-se da história de Aurora, uma senhora de mais de 70 anos, encontrada perambulando sozinha pelas ruas, com uma coleira de cachorro nas mãos e procurando por alguém de nome Camila. Aparentemente desmemoriada, Aurora é levada para um abrigo de idosos onde, sob a proteção e ajuda da assistente social Rosa, tenta relatar, sem sucesso, a história de sua vida, para que possa ser identificada e devolvida ao lar e aos seus familiares.

Aurora, entretanto, tem parcas e disparatadas recordações, sobretudo de sua suposta filha, Camila, ou de uma velha amiga, de mesmo nome, as quais não sabemos se efetivamente existiram ou se apenas faziam parte do imaginário da protagonista desorientada.

Ao longo da leitura, somos levados pelo olhar perdido de Aurora, em suas recordações caleidoscópicas, as quais, sob a escuta atenta de Rosa, a assistente social, tentam ser organizadas em um mosaico inteligível ou coerente.

São peças ou flashes de um filme cheio de cortes, que ora parecem fazer sentido e ora não parecem fazer sentido algum. São instantes vividos de forma repetitiva, intensa e sofrida, por uma mulher interiormente rica e atormentada pelo pânico da morte e da solidão.

Aparentemente assombrada pelo medo terrível da morte de seus entes queridos, principalmente da filha, com quem sonha passar uma velhice tranquila, Aurora apresenta recordações disformes e inverossímeis, marcadas pelo presságio de que uma tragédia possa acontecer a qualquer momento.

Os episódios que Aurora relata são sempre perpassados por seu tema recorrente – a morte – em eventos similares e repetidos, que ocorrem das mais diversas e incríveis maneiras, formatados que são pela mente obsessiva da protagonista e, exatamente por isso, narrados em um só fôlego, acompanhando o seu percurso mental.

Mariana Salomão Carrara ficou entre os 10 melhores escritores de 2022 – Foto: Acervo Pessoal

Ainda que o tema seja duro e profundo, o texto de Mariana Carrara não soa carregado ou opressivo, sendo por vezes até cômico e leve, suavizando a seriedade da reflexão que nos provoca.

O relato (fictício ou real) de um cachorrinho em sua infância parece ser o divisor de águas do livro, conferindo sentido e suporte para toda a narrativa perdida na confusa cabeça de Aurora. A partir dali tudo parece ficar mais claro. Todas as perdas que se sucederam, tudo o que deu errado. Todo o medo. A morte. E tudo o que ela significa.

A morte é, portanto, o seu tema, mas a vida é o que parece importar.

É muita vida o que Aurora precisa e teme perder.

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