Descolonização geral da alma nacional

O necessário acerto de contas com um modelo falido exige dos setores democráticos contrapor ao pragmatismo os seus custos, ganhos e perdas na direção a não ser esquecida, da invenção da democracia. Ou da utopia

Fomos colonizados. Ponto de partida. E nos encontramos colonizados mais do que nunca, mergulhados em autoenganos recorrentes. Analisar é preciso, fora de certezas e métodos habituais. As colônias intelectuais também ajudaram a fundir o mundo e a fragmentá-lo em artefatos míticos e místicos. Tendência ampla que aproveita todo o espectro estético na política em todas as suas dimensões.

Os modelos de racionalização e de racionalidade nesse sentido encontram-se defasados. Talvez beirem o esgotamento. A exemplo do conceito ou ideia de crise, pouco satisfatória para referir -se ao déficit de modernidade. Ulrich Beck nos sugere um estado metamórfico no qual a busca de unidade ou de totalização torna-se suspensa em todos os modelos grandiloquentes.

Considerando os bloqueios cognitivos impostos pela insegurança e pelo medo, amplia-a a desordem e tornam-se opacas as alternativas no horizonte imediato. Enquanto no caos social o caos da inteligência for consequente, vigilância e cuidado soam como ingredientes para uma canja de galinha epistemológica recomendada  diante da ressaca dos grandes modelos, mas também das narrativas moleculares quando isoladas e em momento de renúncia ao pensamento.

Análise é isso: suspender convicções últimas, desentranhar indícios, traços e trilhas de uma tumultuada vivência nas quais pesadelos em suas raízes têm mais a dizer que autoelogios heroicos,  permitindo juntar os cacos da Razão histórica em suas nomeações totalitárias conhecidas desde o século XX e reconstruir um novo mosaico de sonhos e quiçá, uma nova unidade, menos arbitrária e fantasiosa, menos arrogante e alienante. Análise é preciso. De colônias, inclusive desta e outras vontades descolonizadoras.

Colonizados primeiramente em plena Contrarreforma. Isso diz muito sobre nossa mentalidade, hábitos, confusões ideológicas e desarticulações políticas que perpassam séculos e nos fornecem um retrato sem retoques da catatonia política.

Na Europa a modernidade significava insurgência contra a unidade Estado/Igreja. Entre nós sofremos a força da Inquisição e o controle eclesiástico de quase todas as esferas da vida (pública e privada) ainda permanecem sólidos em nossos cotidianos, traindo-nos…

Enganam-se cristãos católicos ao atribuir a neopentecostais o retorno trágico à bandeiras conservadoras dos costumes e da tradição oportunizadas pelo projeto protofascista em curso.  O buraco é mais embaixo.

Gorge Orwell

A revolta contra a modernidade é muito mais complexa envolvendo uma pluralidade de templos e leituras que não permitem reduzi-la à bandeira ultraconservadora em sua exclusividade por pertinência à direita, tampouco ao terreno do progresso/ não progresso, linearmente tomado. O 1984 de Orwell é uma obra sincrética de múltiplas modernidades e pós-modernidades, atravessadas por mundos pré-modernos. Nestes últimos florescem luzes nos modelos comunitários de românticos não subsumíveis no carimbo contrarevolucionário.

Colonizados nos dias de hoje por força de um estado (estrutura burocrática) que nasceu antes da sociedade civil e de suas elites  moldadas nesse ambiente de trocas servis de privilégios, seguimos com muitas dificuldades no processo social por democratização das instituições sociais, vale dizer, com afirmação de avanços culturais e efetividade de direitos fundamentais.

Nas instituições em geral continuam presentes a dependência dos poderes públicos, sobretudo para constituir e direcionar o mercado à sua imagem original. Agrega-se a esse caldo cultural conservador a condição do país em seguir acriticamente e a reboque os interesses hegemônicos do poder e do dinheiro em escala mundial e à reproduzir ideologias desprovidas de alguma mediação histórica. Entre nós as ideias fora do lugar encontram o melhor lugar de sínteses entre o trágico e o bufo.

A margem positiva de progresso encabeçado por setores liberais e de esquerda bate na trave desses limites estruturais. Da dissociação entre ideias e práticas emancipatórias à consequente repetição de mudanças por cima que mais confundem e fazem retroceder o movimento histórico de classes sociais, o autoengamo salvacionista segue como moeda viva em alta para líderes de carismas diversos e adversos, mormente em situações de fadiga constitucional da sociedade (jurídica e ética, política e social).

A crônica condição tardia de inserção seletiva no capitalismo globalmente dominante, alternando entreguismos conhecidos até o momento atual do agronegócio perverso – na forma descontrolada das commodities (com nítido prejuízo à melhoria do acesso a alimentos para a população mais vulnerável), é fato. Tudo indica uma continuidade.

Uma antropologia desse itinerário de lutas e derrotas faz-se necessária à luz da nítida regressão em curso. Ela implica inserir na crítica social a partilha de responsabilidades no balanço atual de desmoronamento (imaginário, simbólico, social) da democracia liberal.

O necessário acerto de contas com um modelo falido exige dos setores democráticos contrapor ao pragmatismo os seus custos, ganhos e perdas na direção a não ser esquecida, da invenção da democracia. Ou da utopia. Se perdida a dimensão utópica continuaremos na toada das sucessivas e tradicionais “revoluções passivas” que frustram, desmobilizam e derrotam os ideais emancipatórios, traindo as classes trabalhadoras. É tempo de reverter e superar o reacionário que existe em nós mesmos.

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