A presidência da República não é para déspotas

A reforma administrativa foi apresentada como um passo rumo à modernização da gestão pública. Na visão da cronista, porém, o alvo principal é suprimir prerrogativas institucionais do Congresso Nacional, e, por consequência, aumentar o poder do presidente da República

Jair Bolsonaro no Planalto - Foto Orlando Brito

Não seriam necessárias muitas linhas para explicar o que é o coração da reforma administrativa proposta por Jair Bolsonaro. Valho-me de poucas palavras para tanto: enfeixar poderes nas mãos do presidente da República. É disso que se trata. O cerne das mudanças está no objetivo que se tem de despir o Congresso Nacional de sua natureza de Poder que controla outro Poder, no caso, o Executivo. O que se pretende é suprimir sua competência para legislar em matérias administrativas.

Marco Maciel, vice-presidente de FHC – Foto: Marcelo Botelho/ObritoNews

Mas, diachos, deve mesmo o Poder Legislativo meter o nariz em coisas que “diriam respeito” ao Poder Executivo? Pode parecer estranho, mas, no sistema presidencialista de governo, fazer leis sobre organização e funcionamento da Administração Pública, função atribuída aos parlamentares, é a pedra angular da chamada “separação de poderes”, o pomposo “checks and balances” do constitucionalismo norte-americano ou, no bom português, como diria o Senador Marco Maciel, a “equipotência de poderes”.

Copiamos essa regra, em 1891, da constituição dos EUA. A mesma que norteava o General Mark Clark, sob o comando de quem a Força Expedicionária Brasileira, como lembrou o presidente da República em seu pronunciamento no Dia da Pátria, “foi à Europa para ajudar o mundo a derrotar o nazismo e o fascismo”.

O presidencialismo só funciona sob a forma republicana de governo. E na República, o chefe de governo − que também é chefe de Estado − precisa estar sob permanente vigilância. Isso é republicanismo. Os “Founding Fathers” reunidos na Convenção da Filadélfia, no verão de 1787, engendraram uma Constituição, seguindo os ensinamentos do Barão de Montesquieu neste sentido. Ensinamentos mais tarde reforçados por Lord Acton, para quem “o poder corrompe; o poder absoluto corrompe absolutamente”.

Evitar o despotismo. Isso explica o afã de submeter-se o Poder Executivo à fiscalização mais acurada possível do Poder Legislativo. Em alguns casos, sem nenhuma interferência direta do Poder Executivo: por exemplo, pelos inquéritos parlamentares, pelos requerimentos de informações − que devem ser respondidos sob pena de crime de responsabilidade −, pela anulação dos atos administrativos exorbitantes do poder regulamentador de leis. O ápice deste controle é o impeachment, o afastamento do cargo. Em outros casos, a contenção é mitigada; conta com a participação do presidente da República, por meio de sanção ou veto de projetos de lei, ficando a palavra final, contudo, com o Poder Legislativo, que pode derrubar os vetos presidenciais. A título de ilustração, isso se dá na elaboração dos orçamentos (que são leis), na fixação dos contingentes, recursos e emprego das Forças Armadas, e, também – o que nos interessa neste momento − na organização administrativa, criação e transformação de cargos, empregos e funções públicas, ou a criação e extinção de ministérios e órgãos da administração pública.

Ministro Paulo Guedes, da Economia – Foto: Orlando Brito

Em que fontes teria bebido o “Posto Ipiranga”, ao propor essa marcha batida rumo ao despotismo? Sabemos todos que o economista Paulo Guedes fez parte do famoso grupo dos Chicago’s Boys que foram ao Chile prestar assessoria ao General Augusto Pinochet em seu intento de racionalizar a máquina administrativa chilena, sob o mantra da redução de gastos a qualquer preço, pouco importando os custos sociais. Desnecessário dizer que o estamento militar deveria ser poupado deste esforço. O resultado dessa faina monetarista está estampado nos protestos gigantescos ocorridos em Santiago, a que o mundo assistiu pouco antes da pandemia, que, por sinal, assolou um Chile desprovido de proteção sanitária pública adequada.

Bom aluno que foi no Colégio Militar de Belo Horizonte, pode, quem sabe, ali ter aprendido, nas aulas de História, algo sobre nossas tradições autoritárias; sobre momentos em que, nossos governantes imbuíram-se da ideia de concentrar poderes. Aquilo que o general Golbery do Couto e Silva, valendo-se da ciência médica, chamava de nossas “sístoles” institucionais. O juízo de valor sobre esses acontecimentos parece estar estampado na proposta de emenda à Constituição que cuida da reforma administrativa, por ele sugerida ao presidente da República.

Dom Pedro I

Ali no bairro São Francisco, na capital mineira, ao estudante fardado pode ter sido narrado o fechamento, em 1823, a mando de Dom Pedro I, de uma Constituinte que elaborava uma engenhosa monarquia constitucional de moldes federativos, tal como se observa hoje no Canadá. Não posso dizer ao certo se lhe terá sido transmitida a frase dita pelo relator do projeto de constituição, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, ao abandonar o prédio onde se reuniam os constituintes, a um canhão apontado para a edificação. Curvando-se ao armamento de artilharia, falou como todo sarcasmo: “Respeito muito o seu poder”.

Ao estudante Paulo Roberto Nunes Guedes pode, talvez, ter sido ensinado, ainda, um episódio que se passou em Santa Luzia do Rio das Velhas, não muito longe de onde se localiza o Colégio Militar de Belo Horizonte. Ali, em 1842, um brilhante guarda-marinha, profundo estudioso das instituições norte-americanas, e que fora afastado da carreira militar ao recusar-se a beijar a mão do imperador Dom Pedro I, liderou uma revolta armada contra a concentração de poderes administrativos disposta na Lei nº 105, de 1840, conhecida como Ato de Interpretação do Ato Adicional de 1834. O rebelde em questão, Teófilo Otoni, se tornaria mais tarde o “Senador do Povo”,  o político mais popular do Segundo Reinado. Sua saga naquelas quebradas do córrego das Calçadas, conferiria ao Partido Liberal, no Império, o mitológico epíteto de “os luzias”…

Deixemos de lado os meandros da reforma administrativa proposta  por Castello Branco em 1967. Guedes, creio, deve conhecê-la. Foi concebida por José Nazareno Teixeira Dias, auxiliar direto de um de seus ícones: o então ministro do Planejamento, Roberto Campos. Seus mandamentos ainda se fazem sentir entre nós. Meia volta, volver!

Um truque manjado foi usado por Paulo Guedes para iludir incautos que sempre veem no funcionalismo público o vilão dos problemas brasileiros: na exposição de motivos pela qual encaminha o anteprojeto ao presidente da República deu enfoque às modificações nas regras que, no futuro, aplicar-se-iam, não tanto aos “marajás”, como gostava de dizer Collor, mas aos barnabés. E todo mundo só comenta a pua nos servidores públicos e nos empregados de estatais, em nome da eficácia e melhoria no atendimento aos cidadãos.

Mas, lidos, cuidadosamente, os termos da exposição de motivos e do projeto em si, vê-se que, camuflado em meio a miseráveis dez artigos, aparece o core da proposição, que consiste em subtrair poderes do Congresso Nacional, hoje previstos em incisos do art. 48 da Constituição Federal, para que o presidente passe a decidir por decreto uma série de questões que dizem respeito à organização da administração pública, sem necessidade de lei, aprovada nas duas casas do Congresso Nacional. Leis que são frutos de debates acalorados, combates acirrados pela aprovação ou rejeição de emendas, antes de ir à sanção presidencial. E tudo isso continua, como é próprio de embates democráticos, se o presidente da República entender por bem vetar o projeto de lei.

Aí o busílis da questão: esvaziar o Congresso, onde se reúnem os representantes do povo, eleitos pelo voto popular, no mesmo pleito em que o presidente da República é escolhido. Curto e grosso: nos termos do art. 60, § 4º, inciso III, da Constituição, a proposta é inconstitucional e não pode ser objeto de deliberação, pois visa a abolir a separação de poderes.

O Congresso Nacional, muitas vezes problemático – Foto: Orlando Brito

Intriga-me saber como se comportará o famigerado “Centrão”, já que esse amontoado de ilustres parlamentares é useiro e vezeiro em usar os instrumentos de sua competência normativa constitucional para barganhar com presidentes alquebrados, dobrar-lhes os joelhos, sobretudo quando eleitos com a bandeira do fim da politicalha, do “toma lá, dá cá”. Entra governo, sai governo, lá estão eles a dar “consistência” à base parlamentar de apoio ao governo no Congresso Nacional. “Comendo no mesmo cocho, bebendo na mesma gamela, tudo “farinha do mesmo saco”, como dizia velha raposa da política mineira, nos idos dos anos 80 do século passado. Estão sempre dispostos a estar dentro do governo, mas, de preferência, perto da porta de saída mais próxima.

A mudança é feita de forma sorrateira, de modo que a tal da transparência a que a exposição de motivos tece loas, falando em um serviço público “disponível ao público mas compreensível pelo público, com clareza e fidedignidade”, esvai-se nas adjacências da própria emenda à Constituição que serve de supedâneo para essa reforma, ou melhor, para essa “revolução” administrativa.  Mera retórica. Faltará ao cidadão comum, aquele que mais precisa de serviços públicos eficientes e eficazes, condições para entender tudo ali contido. Coisa para doutores. Coisas para malandros federais.

* Sandra Starling é advogada e mestre em Ciência Política pela UFMG

Deixe seu comentário