“Povo de Deus” desvenda inserção dos evangélicos na política brasileira

Desprezados ou estereotipados na política, os evangélicos constituem uma comunidade relevante numérica e politicamente. Antropólogo, Spyer procura desvendar este segmento social

O antropólogo Juliano Spyer foi conhecer de perto uma comunidade evangélica de periferia antes de escrever "Povo de Deus"

Os invisíveis do auxílio emergencial, o “Povo de Deus”, mantra católico usado, no passado, pelo bispo Dom Hélder Câmara para denominar os pobres e oprimidos, foi o título escolhido pelo antropólogo Juliano Spyer para título de seu livro sobre a massa de desvalidos que atualmente se reúnem em torno de pastores evangélicos. Esta é uma obra de referência que chega ao mercado com o carimbo de tese de doutorado aprovada pela University College London (UCL). Quem são e onde estão os crentes, esta massa que hoje constitui constitui um dos mais consistentes currais eleitorais do País? Este é um estudo sobre o tema.

É importante anotar que “Povo de Deus” é derivado do projeto acadêmico que rendeu, ao autor, dois livros, um deles de grande aceitação nos meios profissionais da comunicação, intitulado “Mídias Sociais no Brasil Emergente”, sobre as consequências do uso da internet pelas camadas populares, tema que constitui sua especialidade profissional, que Spyer exerce no mercado de trabalho. O segundo é esta obra sobre os evangélicos, um corte de seu projeto original, que está chamando atenção entre cientistas políticos, militantes partidários e profissionais do ramo, tanto que já, mesmo recém-lançado, é referência bibliográfica em discursos, conferências e artigos. A população evangélica é um tema quentíssimo na área, pois traz à tona a conformação de uma parcela significativa da nova direita, no aspecto eleitoral.

A presença de religiões protestantes no Brasil é tão antiga quando o próprio descobrimento do país pelos europeus. A primeira guerra de fato, envolvendo os recém-chegados europeus, deu-se entre católicos e calvinistas franceses, no atual Rio de Janeiro, em 1555; outro embate com forte motivação religiosa que a historiografia narra como conflito internacional foi a chamada invasão holandesa, entre 1624, na região leste, travada na Bahia, depois nos estados nordestinos, em 1630, com epicentro em Pernambuco. Sem falar da chamada revolta dos malês, na Bahia, em 1835, entre muçulmanos e católicos.

Ou seja: o atual estranhamento da intelectualidade brasileira com a participação de pastores e crentes na disputa pelo poder político não é nada de novo, vem dos momentos fundadores e continua assim. Bastaria abrir algum livro de História. A diferença é que os padres, desta vez, aparecem perdendo a guerra para os pastores, que estão ganhando almas como nunca antes da História deste País. E não há como botá-los de volta na obscuridade.

É uma obra para ser lida, tamanha a riqueza de informações e detalhes sobre esse público submerso, que só aparece nas mídias como se fosse uma aberração sociológica. É assim que as chamadas elites os veem, embora já estejam se tornando maioria física no País, devendo em uma década ultrapassar em números os papistas brasileiros, que se orgulhavam de ostentar o título de maior população católica do mundo.

O leitor não espere encontrar um texto com a aridez da literatura acadêmica. Embora mantenha o rigor técnico de um trabalho de cientista social, o autor não tem como evitar o depoimento pessoal, na primeira pessoa, para respaldar suas observações e conclusões. Para fazer este trabalho ele teve de ir viver um ano e meio na periferia da periferia de Salvador, na Bahia. Seu testemunho é um conteúdo essencial.

É interessante ressaltar como essa tese se produziu e chegou à sua conclusão. Spyer chegou à comunidade (que ele não revela qual seja) para estudar os efeitos das mídias sociais, especialmente da internet, naquele mundo de excluídos. Não precisou muito para sentir-se ameaçado. Aquela figura branca e urbana, fazendo perguntas, não convencia a ninguém do crime: era evidente que se tratava de um espião. O tratamento para policiais disfarçados é a de morte. Ele encontrou acolhida entre os protestantes pentecostais, que validaram sua presença e assim ele ganhou livre trânsito e pôde ficar naquela favela por mais de um ano. Ao final, percebeu que sua cobertura era mais do que uma garantia, mas, na verdade, um projeto maravilhoso que poderia levar em paralelo. Foi o que fez gerando este “Povo de Deus”.

Essa aventura do autor, arriscando-se num ambiente de alta periculosidade, por si só já é um feito espetacular. Penetrar nas profundezas da periferia é algo raro, poucas vezes encontrado em nossa literatura jornalística (poucas exceções, Carlos Amorim e Caco Barcelos), muito mais surpreendente encontrar num trabalho de rigor científico. Este é o “Povo de Deus”, que tem um subtítulo ambicioso: “Quem são os evangélicos e por que eles importam”, referindo-se à sua presença no cenário político e eleitoral do País.

O livro começa com uma avaliação estatística, como sói acontecer nos trabalhos sociológicos, com dados quantitativos par oferecer ao leitor um panorama demográfico do cristianismo evangélico. Interessante observar que as seitas pentecostais, ramo do protestantismo, se expande não só no Brasil e na América do Sul, mas também na África e na Ásia pobre. É um fenômeno do que hoje se chama de “Sul do Mundo” (que nem sempre corresponde ao sul geográfico dividido pela linha do equador).

Outro capítulo importante para a avaliação política é “Cristianismo e preconceito de classe”, seguido por “Evangélicos na mídia e mídia evangélica”, completando com “Consequências positivas do cristianismo evangélico”, uma incursão lúcida nas entranhas de uma prática religiosa desqualificada pela intelectualidade brasileira.

Mais surpreendente é o título “A religião mais negra do Brasil”, que desmente o estereótipo de que os pretos são praticantes de seitas de matrizes africanas, acrescentando, algo ainda mais revelador, de que essas tendências protestantes, originadas nos Estados Unidos, surgiram em comunidade negras e muito pobres daquele País.

Outras abordagens polêmicas de interesse para a classe política, pois está no noticiário criador do Bolsa Família (programa social de forte atuação nas periferias urbanas) negativo dos dias atuais, de forma imprópria, têm títulos como “Reciclagem de almas – traficantes e cristianismo”, falando sobre as relações dos pastores e fiéis com o crime, que constitui a instituição mais poderosa nessas periferias, e, também, “A esquerda e os evangélicos”, tema explosivo nos arriais acadêmicos, onde essas comunidades são desconsideradas e suas lideranças execradas como se fossem impostores.

O cantor Caetano Veloso, em Brasília – Foto: Orlando Brito

Formado em História pela Universidade de São Paulo, pós-graduado, mestre e doutor pela UCL inglesa, Spyer alinha alguns comentários de grande relevância na apresentação de seu livro, chamando atenção um texto introdutório de autoria de Caetano Veloso, músico, compositor e cantor, e prefácio de Gabriel Feltran, professor da Faculdade de Sociologia da Universidade Federal de Santa Catarina. Destaca-se, também, o deputado federal Patrus Ananias (PT-MG), ex-ministro dos governos Lula e Dilma (criador e gestor do Bolsa Família, programa de profunda penetração nas periferias urbanas), conhecido líder católico e professor da Faculdade de Direito da PUC-MG, que diz ser “o cristianismo evangélico uma forte e crescente realidade entre nós. Este livro nos ajuda a entender esse desafio instigante”, escreve.

Fac-símile do livro de Juliano Spyer, que busca desvendar o mundo dos evangélicos no Brasil

Na área acadêmica, alinha nomes de grande relevância, professores de universidades de referência mundial, como Amy Erica Smith, professora de ciências políticas da Iowa State University, David Nemer, professor de Estudos de Mídias da Universidade de Virginia (EEUU), e Malu Gatto, cientista política e professora da University College London, completando com a indicação do professor Ricardo Abramovay, titular da FEA/USP e do IEE/USP. Que diz: “O autor apresenta as razões pelas quais esta religião tem sido capaz de fortalecer a coesão social de comunidades desamparadas pelo Poder Público, tornando-se, assim, um movimento cultural decisivo”.

“Povo de Deus – Quem são os evangélicos”, da Geração Editorial, de São Paulo, editado por Luís Fernando Emediato, capa de Alex Maia, produzido em todas as mídias, disponibilizando cópias impressas em papel, também numa versão digital, disponíveis nas livrarias virtuais e nos sites de vendas da editora. Saído às ruas logo nos primeiros dias de 2021, é uma obra que marca com relevo os primeiros momentos deste ano em curso. Uma leitura prazerosa, além de tudo. Spyer tem o dom das letras.

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