Mortes no trânsito – A grande perda de Laura Padovan e Tiguez Luthier

Madrugada de Sexta-feira da Paixão, 29 de março de 2002. Soa o telefone e a senhora Laura atende à ligação. Do Hospital das Clínicas de São Paulo informam que seu filho Daniel, de 19 anos, havia sofrido um grave acidente. O rapaz voltava para casa em companhia de dois amigos, no banco traseiro do carro. Na Avenida Brigadeiro Faria Lima um automóvel a 120 quilômetros por hora não respeitou a luz vermelha do sinal e causou a violenta colisão. Daniel foi socorrido e ficou em coma durante nove dias. Não resistiu. A família decidiu doar oito de seus órgãos para o banco de transplantes.

O corpo do jovem músico Daniel Padovan Lopes foi cremado e parte de suas cinzas foi jogada ao mar, em Itanhaém, por seus pais, os três irmãos e vários amigos. Para manter viva a lembrança do filho, o casal montou na sala de sua casa, no Bairro da Chácara Inglesa, um pequeno altar. É lá que está um porta-retratos com sua foto, entre dois ramalhetes de flores, ao lado da imagem de Nossa Senhora e da urna com outra parte de suas cinzas.

 

“Só resisti à dor pela morte do meu filho porque descobri que o amor que tinha e tenho por ele é infinitamente maior que a realidade de tê-lo perdido” (Laura Padovan Lopes, mãe de Daniel)


Há alguns anos, fui convidado para realizar uma série fotos que abasteceram uma campanha contra a violência no trânsito, do Ministério das Cidades. O projeto intitulado tinha a finalidade de, por meio de fotografias, sensibilizar condutores de veículos a dirigir com responsabilidade para evitar acidentes. As mortes por acidentes no trânsito são tema que afligem milhares, milhões de pessoas. Assunto sério.

Evidentemente, antes de dar início ao trabalho, eu tinha a certeza de que iria estar diante de personagens definitivamente marcados pela dor, pelo sofrimento, pela morte, pela perda de um ente querido, um familiar, um amigo, um conhecido.

Mesmo sendo um fotojornalista acostumado ao longo de anos a estar frente a frente de fatos os mais variados, de catástrofes e tragédias, não podia imaginar iria encontrar tanto sofrimento.

Entrei em contato, através de entidades que reúnem familiares de pessoas vitimadas por acidentes e, durante semanas me comuniquei com elas por e-mail e por telefone. Expliquei-lhes da importância de emprestarem sua imagem em benefício da causa. Para minha surpresa, nenhuma delas de opôs. Ao contrário, se dispuseram a posar para uma foto expressando sua dor, sua revolta, o clamor pela punição dos culpados.

Passei noites sem dormir e dias a fio concentrado, preocupado em dar um conceito ao conjunto de fotos. Pedi a cada um dos personagens – residentes em pequenas e grandes cidades de vários estados do País – que me enviasse uma fotografia de seu familiar falecido. Mandei imprimir a foto de todos e colocá-las num porta-retratos para estes tomarem parte da cena.

Pensei em luz, ângulos, planos, objetivas. Queria que o rigor estético fosse de extrema importância para conferir emoção a cada imagem. Queria a marca do jornalismo presente em cada situação. Só não me lembrei: nada é mais forte que o sentimento do ser humano e suas dores.

Logo na primeira sessão de fotos, o conceito e o padrão que eu traçara caíram por terra. Perderam de longe para a realidade em frente à minha câmara. Então, pude ver que a força das lágrimas, da consternação, da tristeza e, enfim, da dor de cada pessoa eram imbatíveis.

Em nome de atingir meu objetivo (cada imagem prender a atenção de quem a ver), pensei fazer fotos em preto-e-branco. A ausência das cores poderia oferecer maior dramaticidade. Depois, refleti se deveriam ser coloridas porque os matizes dariam maior caráter de realidade ao drama presente. Mas, ao ouvir uma senhora que perdeu o filho adolescente, optei pela técnica do Photoshop que reduz a força de cada cor. E o que disse-me mãe, com palavras carregadas de consternação?

– Ao receber a notícia da morte do meu filho, perdi a noção das distâncias, a precisão dos aromas, a delícia dos sabores e a beleza das cores.

Indescritível a sensação de colocar meu ofício para a finalidade de captar a aflição no seu mais alto grau. Não deixo de me recordar do livro “Diante da dor dos outros”, da ensaísta americana Susan Sontag, falecida em 2004. A escritora faz uma densa análise do que sente um fotógrafo com a missão de captar a amargura do ser humano.

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