No realismo fantástico de Janot, Temer quer ser Aureliano Buendía

A literatura registra aberturas memoráveis que fazem motivar o leitor a incursionar livro adentro. Como as arrebatadoras Amanhecer, suíte de Grieg, e Sonata ao Luar, de Beethoven, alguns trechos da ficção encrustam-se nos desvãos de nossa memória, e de lá não saem.

Caso da abertura de Um Conto de Duas Cidades, de Charles Dickens. “Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos; aquela foi a idade da sabedoria, foi a idade da insensatez, foi a época da crença, foi a época da descrença, foi a estação da Luz, a estação das Trevas, a primavera da esperança, o inverno do desespero; tínhamos tudo diante de nós, tínhamos nada diante de nós (…)”.

Obras relevantes também produzem encerramentos marcantes. Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, escreveu um destes desfechos de alcance universal. “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria” foi a derradeira frase da pena machadiana.

Igualmente antológica é a abertura de Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez. “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”.

Em reação à segunda denúncia do procurador Rodrigo Janot, o presidente Michel Temer classificou a acusação como “realismo fantástico em estado puro”. Pode não ter sido a intenção do redator da nota palaciana, mas a associação com o colombiano García Márquez, mestre do realismo fantástico, é inescapável.

No romance de Gabo, o Coronel de Macondo promoveu 32 revoluções armadas e perdeu todas. Suas derrotas foram compensadas pelos 14 atentados e 73 emboscadas dos quais escapou. Além disso, o pelotão, que abre a obra, não disparou e Aureliano Buendía livrou-se da morte.

Como o personagem fantástico, Temer tem conseguido escapar de atentados e emboscadas armados por aliados e opositores. Enquanto isto, seu prontuário de malfeitos cresce a cada nova delação da Lava-Jato.

O mandatário-tampão poderá se considerar sortudo se daqui a alguns anos apenas lembrar-se que escapou do fuzilamento que seus adversários, como o obcecado procurador, não se cansam de arquitetar. Mesmo que isto custe um pouco mais de degeneração político-moral da Macondo brasileira.


O NOME DISSO É MÚSICA: Beethoven / Valentina Lisitsa.

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