Marun, a política como ela é

Carlos Marun

Às vezes nos acostumamos de tal modo com a farsa que ela adquire contornos de sortilégio. Enfeitiça-nos num grau que, mesmo desmontada, recusamos encará-la como trama que é.

A gente sabe que participa de uma fabulação. Mas, de tão repetida, tão entranhada no cotidiano, ela acaba por se integrar ao rame-rame.

O falso vira rotina. E, como toda a rotina, quanto mais enraizada mais difícil de ser desfeita.

Quando disse esperar “reciprocidade” dos governadores contemplados com recursos da Caixa, o secretário de Governo, Carlos Marun, escancarou o fisiologismo. Se quiserem verbas públicas, os mandatários estaduais devem convencer suas bancadas a aprovar a reforma da previdência, anunciou sem pudor o escudeiro temerista.

De uma entrevista, o gaudério desfez a farsa repetida anos a fio. O espanto, tirante os desavisados, foi mais pela sinceridade do ministro do que pela revelação do modus operandi do Governo. Não do Governo, dos governos.

Se alguém acreditar que Sarney, Collor, Itamar, Fernando Henrique, Lula e Dilma, para ficar no pós-ditadura, distribuíam numerário por critérios técnicos, resta justificada a comoção. Para os demais, não.

“Protestar contra a crueza verbal do ministro
é resguardar a quimera da liberação técnica de verbas públicas.”

O anúncio formal vai ao encontro do que escrevem há tempo jornalistas e cientistas políticos. A política, via de regra, é feita com aliados que esperam retribuição ao apoio dado.

Toma-lá-dá-cá

A franqueza de Marun deixou às claras duas antigas premissas. Aos amigos do rei, tudo. Quem quiser benesses do governo tem que aderir ao troca-troca.

Ao escancará-las, Marun descortina uma contradição. Governantes repetem que a liberação de verbas obedece a critérios técnicos. Postulam os liberadores de pecúnia que ser governo ou oposição não interfere nas “ações de governo”.

Tão falso como acreditar que juízes julgam apenas de acordo com a lei. Ou que procuradores denunciam tão somente pelo interesse popular.

Protestar contra a crueza verbal do ministro é resguardar a quimera da liberação técnica de verbas públicas. Insurgir-se contra o desnudamento do fisiologismo por quem o pratica é fomentar a demagogia, ironicamente outra propriedade intrínseca da política.

A indignação contra os males do toma-lá-dá-cá funciona como alerta à podridão que carcome partidos e seus próceres. Já o ato do teatro da política onde a plateia finge acreditar nas falas dos atores pouca serventia tem.

Tanto no teatro como na política, pagamos para assistir à farsa. Na segunda, porém, o preço é muito maior.

A vida como ela é…

Giuseppe Lampedusa

Maus hábitos na política são antigos. N’O Leopardo, de Lampedusa, uma passagem parece extraída de uma crônica hodierna.

Arquitetando em devaneios a sorte do seu sobrinho Tancredi, o príncipe de Salina maquina. “Para fazer carreira na política, (…), seria preciso dinheiro, e muito, para comprar votos (…)”. As eleições como elas são.

Quando falou, Marun maquinava a aprovação da reforma, mas não devaneava. Expôs a urdidura real, não a farsesca, da rotineira compra de apoio. A política como ela é.

Em meados do século XX, Nelson Rodrigues celebrizou amores desandados, paixões bruxuleantes, alcovas incandescentes. Na coluna “A vida como ela é…”, da Última Hora, escancarou a vida seca de casais e as tentativas de fuga do cotidiano enfadonho.

Quem quiser presenciar cenas da política como ela é pode acompanhar as entrevistas de Marun. Para as cenas da vida intramuros, basta rever a série do “anjo pornográfico” reprisada toda semana no Viva, canal 36.

As cenas rodriguianas ambientam-se no Brasil dos anos 1950. A narrativa de Lampedusa, no limiar dos séculos XIX e XX na Sicília.

Permanecem atuais. Doenças do amor, assim como as manhas da política, emanadas todas das vicissitudes humanas, não têm data. São atávicas, como o gosto pela farsa.

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